sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Lima Trindade entrevista Aleilton Fonseca


ENTREVISTA COM ALEILTON FONSECA
POR LIMA TRINDADE

“A literatura é de grande utilidade pública”
Aleilton Fonseca

Aleilton Fonseca nasceu em Firmino Alves-BA em1959, e viveu a infância e adolescência em Ilhéus-BA. Residiu em João Pessoa (1988-1990) e em São Paulo (1994-1997), fixando-se em Salvador, em 1996. Cursou Letras na UFBA, mestrado na UFPB, e doutorado na USP (1997). É Professor Pleno (titular) de Literatura da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. Em 2003 lecionou na Université d’Artois (França). É coeditor das revistas Iararana (Literatura) e Légua e Meia (Artigos). Publicou vários livros. Poesia: Movimento de sondagem (1981), O espelho da consciência (1984), Teoria particular do poema (1994). As formas do barro (2006). Contos: Jaú dos Bois (1997), O desterro dos mortos (2001), O canto de Alvorada (2003) e Les marques du feu (2008, França). Ensaio: Enredo romântico, música ao fundo (1996) e Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire (2008, Bélgica). Romances: Nhô Guimarães (2006) e O Pêndulo de Euclides (2009). Pertence à UBE-SP, ao PEN Clube do Brasil e à Academia de Letras da Bahia. Acaba de publicar A mulher dos sonhos & outras histórias de humor, uma coletânea de 25 histórias curtas, focalizando situações bizarras do cotidiano.

1- Você começou publicando poesia, mas parece ter se firmado mesmo na prosa. Houve uma razão especial para a mudança ou ainda cultua o gênero?
Aleilton - Na verdade, comecei publicando contos em jornais, em 1978, aos 19 anos.  Publiquei três contos no Caderno de Domingo, do Jornal da Bahia, então dirigido por Adinoel Motta Maia, e dois contos no suplemento dominical A Tarde/Novela, dirigido pelo saudoso Prof. Junot Silveira. Eu residia em Ilhéus e fazia o curso de Técnico em Agrimensura na EMARC, em Uruçuca. Também publicava a coluna “Entre aspas” no Jornal da Manhã, de Ilhéus, além de contos e poemas no mesmo jornal.  Em 1981, já em Salvador, cursando Letras na UFBA, soube do edital da Fundação Cultural do Estado da Bahia, convocando jovens autores para a Coleção dos Novos, selo criado e dirigido pela poeta Myriam Fraga. Inscrevi o livro de poemas Movimento de Sondagem, que havia recebido menção honrosa no Prêmio Literário UFBA de 1980.  O livro foi aprovado e saiu como volume 2 de poesia da Coleção dos Novos. Mais adiante, meu veio criativo se intensificou na prosa, possibilitando-me publicar livros e receber o um reconhecimento público crescente, através de edições, prêmios e leituras. De fato, sou conhecido e me reconheço como ficcionista, muito mais do que como poeta e ensaísta. Não houve uma razão especial para eu abraçar a ficção, mas sim a afirmação de uma tendência mais forte de contar histórias, aliás um hábito que aprendi com a minha avó D. Anália Souza, de 90 anos,  e de minha mãe D. Lourdes Santana, de 70 anos.  Até hoje, quando nos encontramos, em Ilhéus, é para contar histórias, umas dramáticas e outras divertidas. Creio que temos a imaginação e a narrativa à flor da pele e da voz.
2- Em Salvador, ainda no começo da sua vida literária, você integrou a Geração Oitenta. Fale um pouco sobre o grupo e como era o cenário cultural daquela época em relação ao restante do país.
Aleilton – No início dos anos 80 era muito caro e difícil publicar um livro na Bahia. Os autores jovens esforçavam-se para se afirmar, através das raras e efêmeras revistas, através de edições de mimeógrafo e pequenas brochuras produzidas em off-set. A chamada Geração Oitenta, na Bahia, composta por escritores iniciantes, era desde então dispersa. Tivemos, apesar de tudo, quatro vetores de divulgação e afirmação dos jovens escritores: o concurso Prêmios Literários UFBA de 1980, que revelou cinco poetas; o Movimento Hera, de Feira de Santana, que publicava novos autores em sua revista; o movimento Poetas na Praça, que reunia um grupo muito atuante nas ruas, e a Coleção dos Novos, que publicou quatorze autores de poesia e de prosa, criando um clima de incentivo e renovação muito importante. O movimento editorial na Bahia era muito local, muito isolado do restante do país. Jorge Amado representava sozinho a expressão literária do estado, nacional e internacionalmente. Parecia não existir mais nada além dele.
3- Depois de O espelho da consciência, 1984, houve um interregno de dez anos até Teoria particular (mas nem tanto) do poema. Qual a razão para tamanha ausência?
Aleilton – Em 1984 entrei na vida universitária, como professor da UESB, em Vitória da Conquista, Bahia. Então me dediquei à formação profissional. Cursei Especialização, fiz mestrado na Universidade Federal da Paraíba, residindo em João Pessoa, entre 1988 e 1990, com minha mulher, Rosana Ribeiro Patricio, e nossos filhos, Diogo e Raul. Aliás, Raul nasceu em João Pessoa, nessa época, em 1989. Com a família, retornei à Bahia, adiante segui para São Paulo, em 1994, para cursar doutorado na Universidade de São Paulo. Foram 10 anos de estudos e aprendizado teórico, crítico e didático. Em 1994, em plena USP, recuperei o ímpeto da criação. Escrevi e publiquei o poema Teoria particular (mas nem tanto) do poema. Comecei a escrever os contos do livro Jaú dos Bois, que recebeu menção honrosa no Prêmio Nascente 1994, da USP. Em 1996, esse livro, revisto e aumentado, foi premiado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, e editado pela Relume-Dumará, em 1997. Foi meu retorno à vida literária plena. Entre 1995 e 1997, enquanto escrevia a tese de doutorado, eu ia também escrevendo poemas e contos que logo saíram em livros e revistas, com muito êxito. Já a tese, sobre a poesia urbana de Mário de Andrade, deve sair em livro ainda este ano. A minha ausência de 10 anos, portanto, foi devida a um ciclo de formação de professor, pesquisador e ensaísta, voltado para a reflexão sobre questões teóricas e analíticas da literatura. Hoje, produzo poesia, ficção, crítica e ensaios. Eu era um professor que escrevia; agora sou um escritor que dá aulas.
4- Pensa que a poesia perdeu o status nos dias de hoje? Como percebe o fenômeno da internet na formação de novos escritores e leitores?
Aleilton – Vivemos a era da imagem e da comunicação de massas. A poesia e a ficção disputam espaço e tempo com várias outras ocupações oferecidas aos diversos segmentos do público. A literatura foi muito popular no século 19, como uma fonte de educação, ilustração e entretenimento. A ênfase agora é na formação técnica, profissional e científica das pessoas. Ainda que menos visível e dificilmente mensurável, o volume de leitura é muito maior hoje, considerando-se o crescimento da população e o ritmo e os apelos da vida contemporânea. A questão do status da poesia – e da ficção – é de escala. A literatura continua sendo muito importante na formação, na vivência e no enriquecimento intelectual dos indivíduos. Se uma sociedade não investe nisso, fica prejudicada nos índices de discernimento e participação criativa, produtiva e crítica de sua população. Há desníveis entre os países, e, dentro deles, entre os diversos segmentos sociais. É uma questão de educação e de investimento na formação intelectual das pessoas. Todos os países que investiram na educação e na leitura desenvolveram-se rapidamente. A internet é uma conquista fabulosa de nosso tempo. Ela multiplica as possibilidades de integração à comunidade de informações em tempo real. Isso mudou, de forma silenciosa e sub-reptícia, a face do mundo. A internet é uma ferramenta fundamental na formação dos novos escritores e leitores, pois os insere instantaneamente no processo universal de troca de informações, de conhecimentos e de bens culturais, através dos milhares de sites, blogs, orkuts, livros, revistas e boletins eletrônicos.
5- Tanto Nhô Guimarães quanto O Pêndulo de Euclides são romances concebidos a partir de contos. Como foi esse meio-de-campo? Houve uma transposição da idéia principal ou você partiu de inquietações não contempladas originalmente nas narrativas curtas?
Aleilton – A criação literária é um processo engenhoso de autoconhecimento. Cada obra é uma revelação do autor para si próprio e para o leitor. Ocorre uma ideia, dá-se a gestação de um texto, até um dia aflorarem o apelo e a necessidade da escrita. No caso desses dois romances, inicialmente tive ideias associadas às minhas leituras e às minhas vivências com os livros, os fatos e os autores. Escrevi o conto “Nhô Guimarães” em 2000 e o publiquei no livro O desterro dos mortos, em 2001. Mais adiante, a voz narrativa do conto manifestava-se na minha mente a fim de que eu continuasse o processo narrativo. Voltei ao conto, seccionei-o em várias partes e fui escrevendo novas histórias encaixadas, ao sabor do enredo principal. O conto tornou-se um romance. Na ampliação do texto, mantive a unidade difusa de uma história de fundo, entremeada por diversos causos vividos ou lembrados por uma senhora sertaneja, a narradora, que afirma ter sido amiga de Guimarães Rosa, a quem conhecera em suas viagens pelos sertões dos Gerais. Já O pêndulo de Euclides surgiu como sinopse para a escrita de um romance. A partir da sinopse de 30 laudas, escrevi o conto “Às margens do Belo Monte”, de 20 laudas. O conto foi publicado no livro Todas as guerras, coletânea organizada por Nelson de Oliveira, em 2009. Nesse processo, retomei e expandi a sinopse inicial até concluir o romance, que foi publicado em agosto de 2009, no centenário de morte de Euclides da Cunha. Nos dois casos, fiz uma transposição da ideia principal do conto e, ao mesmo tempo, desenvolvi várias situações que tinham origem em minhas inquietações não contempladas nas narrativas curtas. O conto impõe contensão de elementos, enquanto o romance comporta a expansão dos diversos aspectos do enredo. Tenho alguns contos que são verdadeiros convites à escrita de um romance, através da ampliação de tudo aquilo que se entremostra nas entrelinhas da narrativa curta e que pode ser retomado e estendido na forma romanesca. Sinto-me melhor no papel de romancista.
6- Considera que tem mais facilidade para um gênero específico?  Quais são os seus hábitos para escrever? Eles se modificam de um livro para outro, de um gênero para outro?
Aleilton – Na criação literária não existe facilidade nem para se colocar ou tirar uma vírgula. Escrever é um processo difícil, no qual ideias, palavras, textos, correções, cortes, tudo ocorre e convive simultaneamente, como um desafio à paciência e à capacidade do escritor. Eu vivo tendo ideias que vêm e vão, umas persistem e outras somem ou se adiam. Nem todas as ideias se concretizam em texto. Cada escritor tem seu método, mas cada livro também impõe sua regra e sua medida. Levei 5 anos para concluir a transformação do conto “Nhô Guimarães” em romance, após submetê-lo à leitura de cerca de 6 leitores críticos. Levei um mês para desenvolver o romance O pêndulo de Euclides, e mais quatro meses relendo e reescrevendo os originais, após conferir e compulsar as leituras, as críticas e as sugestões de quatro amigos escritores: Carlos Ribeiro, Gerana Damulakis, Gláucia Lemos e, principalmente, o poeta Luis Antonio Cajazeira Ramos, que leu em voz alta cada frase dos originais e me fez diversas sugestões. Leitores críticos ajudam muito, pois anteveem questões que o autor pode analisar e sobre as quais pode refletir, antes de dar a obra por concluída.
7- O seu novo livro, A mulher dos sonhos, é uma guinada para a literatura de humor?
Aleilton – Desde o início de minha carreira, também escrevo histórias de humor, até aqui só publicadas em jornais. Resolvi, então, juntar em livro uma seleção dessas narrativas, que captam momentos sui generis do cotidiano, situações que levam o leitor ao riso. Várias delas foram publicadas nos anos 90, no Caderno 2 do Jornal da Tarde de São Paulo, numa coluna então dirigida pelo escritor José Nêumanne Pinto. Outras circularam em fotocópias na universidade e por e-mail, com muito sucesso. Minha mulher, Rosana Ribeiro Patricio, professora e pesquisadora de literatura, me incentivou muito a publicar o livro. Não pretendo com isso me afastar da narrativa dramática. Mas o humor é uma faceta que já está presente em passagens dos meus romances. Neste livro eu quis mostrar o humor de forma mais explícita, em histórias curtas e certeiras. Trata-se de um livro para fazer o leitor rir, mas também refletir sobre situações bizarras do cotidiano.
8- Recentemente você teve uma antologia de contos, Les Marques du Feu et autres nouvelles de Bahia, traduzida e publicada na França, seguida de vários lançamentos no país. Como foi essa experiência?
Aleilton – No ano 2000 conheci, em Salvador, o ensaísta e tradutor Dominique Stoenesco, então professor de português num Liceu e numa universidade na França. Formado pela Sorbonne, é um fã da literatura brasileira, apreciador da obra de Jorge Amado. Ele coedita até hoje a revista Latitudes, Cahiers lusophones, que divulga literatura e cultura de língua portuguesa na França. Dominique gostou de meus contos, escreveu sobre meu trabalho na revista e, em 2007, manifestou o interesse de traduzir alguns de meus contos. Ele reuniu os contos traduzidos em livro, que foi publicado pelas Éditions Lanore, em 2008. Lançamos o livro em Paris, em Rennes, em Toulouse e na capital belga Bruxelas, sempre com um bate-papo com o público, com tradução simultânea. Visitamos as universidades Sorbonne Nouvelle, Rennes e Toulouse Le Mirail, pelas quais fomos convidados a falar do livro e da tradução. O livro Les marques du feu foi adotado pelo Lycée des Arènes, de Toulouse, o que me rendeu uma homenagem especial, num evento coordenado pela Profa Brigitte Thierion e outras docentes. A partir dos enredos dos contos, os alunos produziram pinturas, instalações, gravuras, cerâmicas, livros artesanais, planos teatrais, esculturas, entalhes em madeira, quadrinhos e vídeos. Eu fui convidado para essa exposição e para falar no evento. Estive lá, vi e vivi essa demonstração de reconhecimento de meu trabalho. Foi algo inesquecível.  No mesmo ano, o Instituto de Letras da UFBA fez um seminário, em comemoração aos meus 50 anos, através do Projeto de Pesquisa “O escritor e seus múltiplos”. A Academia de Letras da Bahia também fez uma sessão comemorativa. Tudo isso me incentiva a trabalhar mais, pois esses eventos confirmam o compromisso do escritor para com a comunidade literária.
9- Em sua opinião, o interesse pela literatura brasileira fora dos padrões dos best-sellers aumentou ou diminuiu? Persiste a busca pelo exótico ou há espaço para todo tipo de produção?
Aleilton – Trata-se de uma questão de escala. Há uma demanda significativa por best-selleres em todo lugar do mundo. E há as demandas e as circunstâncias que levam à leitura de obras literárias de alto padrão artístico, seja no ambiente literário, seja na escola, na universidade, nos grupos intelectualizados. Creio que há espaço para todo tipo de produção, pois o mercado opera por um processo de segmentação do consumo e dos produtos.  Hoje, a literatura não pode ser limitada ao padrão consagrado pela tradição intelectual, aliás, eurocêntrica e burguesa.  A literatura hoje é uma noção plural, mais ampla e diversa, e por isso mesmo segmentada, que comporta, forçosamente, os diversos adjetivos indicadores dos mais variados grupos de interesse. Isso faz parte da democratização do acesso aos bens simbólicos de maneira descentralizada, dentro dos horizontes dos diferentes grupos humanos e da diversidade cultural. Se, por exemplo, você não lê a chamada literatura espírita, saiba que milhares de pessoas preferem-na à literatura dita “normal”. Há quem prefira literatura estrangeira.  Há quem goste mais das biografias. Há quem se interesse por livros temáticos, da moda, de grande apelo midiático. A literatura precisa descer, definitivamente, da velha torre de marfim, e reincorporar o seu antigo estatuto utilitário. Os artistas da modernidade caíram numa cilada, ao voltar-se à arte da palavra em si, ou seja, a arte em si mesma, arte pela arte, disseminando a ideia de que a literatura não tem uma utilidade concreta para além de si mesma. É claro que ela tem utilidade, desde a sua origem. Ao cultivar a “inutilidade” da poesia, os modernos tornaram, ipso facto, sua leitura dispensável às pessoas práticas, voltadas às atividades e interesses técnicos e produtivos. Disseminou-se o equívoco de que literatura, sobretudo a poesia, é uma perda de tempo. Ledo e terrível engano. A literatura é muito útil. Os escritores do século 21 devem repensar essa falsa “inutilidade”, recuperando um lugar indispensável da literatura na formação integral dos indivíduos. Estão faltando literatura e arte na formação das pessoas. Se a literatura for vista e aceita como um valor indispensável, as pessoas tenderão a incorporá-la em maior proporção ao seu cotidiano, ao seu universo intelectual.  Este é o desafio: desenvolver uma efetiva educação literária na sociedade do século 21. 
10- Muitos debatem o problema do narrador na literatura atual, defendendo um esgotamento do discurso onisciente e o uso da terceira pessoa como estratégias narrativas. Essa questão parece estar bem resolvida em seus dois últimos livros de prosa, nos quais se tem a impressão de que o narrador-autor se cala para que as personagens, até então secundárias no livro e também na literatura, levantem voz e ocupem o proscênio. É uma escolha consciente? O que ela diz do autor?
Aleilton – Em seus romances, o escritor russo Dostoieviski quebrou a hegemonia da voz narrativa única, absoluta, onisciente e onipotente. Mikhail Bakthin analisou sua narrativa, na qual contracenam diversas vozes, definindo o romance polifônico. Com seus estudos, Bakthin influenciou, ao lado de outros estudiosos, as novas teorias do narrador. Walter Benjamin também refletiu sobre o tema, demarcando a diferença entre o narrador clássico, de contos tradicionais, lendas e fábulas, e o narrador moderno, do romance do século 20. Hoje coexistem as múltiplas possibilidades, formas e técnicas que os escritores empregam visando a um certo efeito ou resultado ficcional. No meu caso, escolho meus temas, meus personagens e, consequentemente, meus narradores de forma consciente. Procuro dar voz a narradores pinçados de uma experiência cultural, e que não costumavam ter a primazia da palavra. Em Nhô Guimarães, uma sertaneja de 80 anos detém a palavra e narra, de seu ponto de vista, o imaginário de um sertão que sempre pertenceu aos homens. Em O pêndulo de Euclides, o narrador erudito e a voz oficial dos livros se calam para ouvir a voz do narrador sertanejo canudense, que conta uma outra versão para a destruição do Arraial do Belo Monte. A Guerra de Canudos continua, agora no campo da revisão dos registros históricos, no debate cultural, na reavaliação dos fatos e na audição das vozes que foram sufocadas. Meu romance traz isso à tona. Trata-se, no limite, de um trabalho de inclusão de vozes culturais que precisam intervir no processo da instauração de sentidos, participando como sujeitos da legitimação dos saberes coletivos. 
11- Em O Pêndulo de Euclides você mistura ficção, dados históricos, memória e ensaística. Esse hibridismo é uma das marcas da permanência do romance enquanto possibilidade de renovação e possibilidades criativas na contemporaneidade?
Aleilton – Creio que sim. O romance de cunho realista praticamente esgotou seu alcance de interesse em face das múltiplas formas de veiculação imediata da realidade cotidiana. O romance fantasioso tem seu lugar junto a um determinado segmento do público, entretanto funciona mais como forma de entretenimento, sem maiores consequências na opinião e na visão de mundo dos leitores. O romance puramente literário, da palavra pela palavra, metalinguagem de exibição das técnicas romanescas, limita-se às igrejas dos literatos puros e seu pequeno público fiel. O romance, que é de origem burguesa, já gastou muito tempo e muitas páginas com dramas e dilemas particulares, com as idiossincrasias de protagonistas problemáticos presos às ideologias de sua classe. O mundo vive grandes questões coletivas, e demanda dos escritores uma intervenção à altura nos debates atuais. O romance há muito vive uma crise de linguagem, de foco e de identidade. Paradoxalmente essa crise o mantém vivo. Mas já se falou até na morte do romance. Então, qual é a saída para uma literatura que se queira portadora de utilidade e que possa ter permanência num mundo prático e ultra-realista, mantendo o interesse do leitor atual? Acredito na emergência do romance híbrido, em que a multiplicidade, conforme uma das propostas de Ítalo Calvino, seja sua característica de fundo e sua força motriz. Um romance tecido com elementos de ficção, mas também de história, de memória, de crítica, do ensaio, do debate, e que seja capaz de amalgamar uma teia de relações de interesse social mais amplo. O romance precisa ser propositivo e instigador, motivando o leitor a intervir e a se posicionar, em face de um conteúdo engastado na realidade da história e da cultura. Neste sentido, creio que o hibridismo, a polifonia e a multiplicidade sejam os elementos capazes de manter a permanência do romance na contemporaneidade enquanto ficção, e também como texto de utilidade intelectual e de interesse coletivo.  A literatura é de grande utilidade pública.



A UNIÃO. Ano LXI, nº 11, João Pessoa, novembro de 2010. p. 15-19.