domingo, 20 de novembro de 2011

BRIGITTE BARDOT


EM BÚZIOS, COM BRIGITTE BARDOT -  10/07/2011 


Eu fui a Búzios e conheci Brigitte
sentada na mala, à prova do tempo
que cava marcas em tudo que existe
tornando passado a flor do momento.

A noite avançava, perto das onze,
e Brigitte me recebia na praça
o rosto belo, talhado no bronze,
abraços e beijos cheios de graça.

Doce aos passantes, amando-os calada,
posa pra fotos de recordação,
e sob o olhar da lua,  iluminada

recebe abraços dos que vêm agora
tocar seu corpo, de antiga paixão,
enquanto ela só do mar se enamora.

-Aleilton Fonseca-

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O PÊNDULO DE EUCLIDES (2009): AINDA HÁ O QUE REVELAR SOBRE CANUDOS (1897)

 
Artigo apresentado no XX Seminário do CELLIP
 
XX CELLIP 

                                                                                                 
Adenilson de Barros de ALBUQUERQUE (PG – UNIOESTE)[1]
                                                                                      Gilmei Francisco FLECK (UNIOESTE)[2]

RESUMO: Mais de um século após os eventos ocorridos em Canudos (1897), o escritor baiano Aleilton Fonseca publica O pêndulo de Euclides (2009). Nesse romance, entre outras curiosidades, são esclarecidos aspectos da estada do autor d'Os Sertões (1902), como correspondente de guerra, no estado da Bahia. O responsável por tais esclarecimentos é um sertanejo que decide contar um velho segredo ao narrador/personagem. O tempo narrativo da obra, salvo algumas incursões ao final do século XIX, restringe-se a alguns dias referentes ao ano de 2003. Diferentemente de romances como Os jagunços (1898), João Abade (1958), La guerra del fin del mundo (1981), por exemplo, em que todo o enredo se desenvolve concomitante à guerra. Assim, recorrendo-se a postulações que atribuíram a romances históricos, principalmente os surgidos da segunda metade do século XX em diante, características de metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991), novo romance histórico (AÍNSA, 1991; MENTON, 1993) ou romance histórico contemporâneo de mediação (FLECK, 2008), o presente trabalho pretende verificar a contribuição de O pêndulo de Euclides para o estudo de tema tão debatido e ainda não resolvido como é o caso da Guerra de Canudos. 

PALAVRAS-CHAVE: O pêndulo de Euclides. Romance histórico. Revelação. 

Introdução

Mais de um século após os confrontos armados ocorridos no sertão da Bahia, os quais receberam o nome de Guerra de Canudos, Aleilton Fonseca publica, em 2009, o romance histórico O pêndulo de Euclides. Numa proposta de leitura da história pela ficção, o texto de Fonseca, até o momento, parece ser a mais recente revisita ao evento sangrento cessado a 5 de outubro de 1897. Mesmo estando precedido por mais de uma quinzena de publicações daquela natureza – romances históricos voltados de uma ou outra maneira à Guerra de Canudos –, consegue apresentar novos vieses, indagações, explicações e demonstra, assim, unindo história e ficção, que nunca secam as possibilidades para se “forjar o leito do rio para onde navegará o futuro, para situar o futuro no lugar dos desejos (MARTÍNEZ, 1996, p. 10).
Desejando encontrar-se a si mesmo, o narrador/personagem de O pêndulo de Euclides volta ao cenário dos conflitos em pleno século XXI. Ele quer saber das gentes e da situação atual de Canudos. Descobrir facetas das histórias que chegaram até ele, quando menino nos anos de 1960 e 70, por distintas formas: pelo verbete “Canudos” num dicionário de História do Brasil; pelas narrativas de sua avó Laudilina e, especialmente, pela leitura d’Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, livro emblemático que conseguiu adquirir ainda quando era adolescente. Essa busca de compreensão do presente, recorrendo-se a situações históricas passadas, está de acordo com as obras da novelística dos últimos decênios que, “después de las obras complejas, experimentales y abiertas, [...] necesitaran profundizar en su propia historia, incorporando el imaginario individual y colectivo del pasado a la ficción” (AÍNSA, 1991, p. 82). Ainda conforme Aínsa (1991, p. 82), essa corrente da nova narrativa histórica se inscreve “en una más vasta preocupación de la novela latinoamericana: el movimiento centrípeto de repliegue y arraigo, de búsqueda de identidad a través de la integración antropológica y cultural de lo que se considera más raigal y profundo”. (grifos do autor).
A decisão de viajar a Canudos para conhecer as pessoas, a paisagem e as histórias, e, posteriormente escrever um livro – antigo desejo que o protagonista revela – surgiu a partir da palestra final em um seminário realizado na Universidade da cidade de Feira de Santana, no ano de 2003. O narrador não concordou com as palavras finais do conferencista o qual sentenciou “que, mais de cem anos depois, a guerra era um tema exaurido. Nada de novo havia a dizer ou a acrescentar. Tudo estava dito, registrado, lido e analisado” (FONSECA, 2009, p. 13)[3]. Após uma cerveja no quarto da pensão onde estava hospedado, o narrador até admite que a história de Canudos encontra-se devidamente assentada

[...] nos livros, nos ensaios, nos romances, na poesia, no cordel, nas fotos e nos jornais da época. Um acervo que dá conta dos fatos e de suas conseqüências históricas e sociais. Mas tudo isso esgota mesmo a história da guerra? Nada mais há além do silêncio? Nada mais ecoa nos campos calcinados da memória que subjazem nas águas? Só nos resta interpretar as marcas do passado? De certa forma, sim. De alguma maneira, não. (OPDE, p. 14).

Essa procura de se encontrar ecos nas profundezas da memória, para além da pura e simples interpretação, parece evidenciar aquilo que Tomás Eloy Martínez entende como uma das operações mais originais da ficção histórica: “sua tentativa de recuperar os mitos de uma comunidade, sem invalidá-los ou idealizá-los, mas reconhecendo-os como tradição, como força que foi deixando seu sedimento sobre o imaginário” (1996, p. 14). Assim, na manhã seguinte, com o pensamento de passar alguns dias no local da guerra, o narrador viaja ao sertão na companhia de dois novos amigos que conhecera durante o café da manhã: o francês Dominique, professor de língua portuguesa em Paris e o poeta e ensaísta brasileiro Alex. Em Canudos, o narrador, notadamente alter ego de Aleilton Fonseca, terá a oportunidade de aprender e, finalmente, revelar os segredos d’O pêndulo de Euclides. 

Um parêntesis

Aleilton Fonseca, em entrevista à radio Unesp[4], afirma que “há certos vazios que a história não registra e que só a ficção pode dar conta”. Mais adiante, perguntado sobre a lacuna histórica que o mobilizou mais para a escrita do romance, explica ter sido “o enigma de Euclides da Cunha. Quando exatamente, em que momento de sua vida, ele tomou aquele choque de significados e começou a mudar de posição”. Euclides da Cunha na nota preliminar d’Os Sertões, escreve que a guerra de Canudos “foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”. Esta atribuição criminal ao extermínio de milhares de sertanejos em 1897 seria aceitável, se quem a formula não fosse um adepto convicto dos pressupostos da República. No artigo “A nossa Vendeia”[5], há referência às “hostes fanáticas do Conselheiro” e aos soldados da República talvez não percebidos “através das matas impenetráveis, coleando pelos fundos dos vales, derivando pelas escarpas íngremes das serras, os trilhos, as veredas tristes por onde passam, nesta hora, admiráveis de bravura e abnegação”. Dessa forma, tendo-se em conta dois posicionamentos díspares, separados claramente pela visita de Euclides ao campo de batalha pouco antes do término dos conflitos, uma certeza e um questionamento se evidenciam. A primeira constata-se na leitura d’Os Sertões, em que Euclides da Cunha apresenta um discurso muito diferente do exposto em “A nossa Vendeia”. A grande questão, entretanto – aí vem à tona a lacuna histórica referida e desvendada por Aleilton Fonseca em O pêndulo de Euclides –, está no motivo que o levou a uma reviravolta conceitual a ponto de transformar a bravura e a abnegação dos soldados da República em uma ação criminosa.
Mesmo ao acreditar que “o sertão não tem saída por conta da irreversibilidade do progresso anunciado com pompa pela República e apoia-se na ciência da época para demonstrar isso” (REGO, 2008, p. 14), Euclides dedica apenas duas páginas d’Os Sertões para apresentação sistemática das teorias raciais que o levaram a caracterizar os sertanejos como uma subcategoria. Aberto e fechado esse parêntese considerado por ele um divagar pouco atraente, propõe em seguida analisar a figura original daqueles a quem chamou “nossos patrícios retardatários”. Quis evitar a pompa de neologismos etnológicos e somente reproduzir, “intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão – abandonados – há três séculos” (CUNHA, 1987, p. 79-80). A hoste de fanáticos, então, passa a ser delineada como fortes: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 1987, p. 81) e Antônio Conselheiro, “um caso notável de degenerescência intelectual” (1987, p. 103) influenciado pelo meio em que estava inserido, já na página seguinte, é favorecido por uma justificativa reparadora: ele tinha “uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além” (1987, p. 104).
Deste modo, indo além da dicotomia litoral versus sertão, Cunha busca compreender a apresentar um contexto ainda completamente desconhecido ao Brasil oficial. Viu em Antônio Conselheiro um místico doente que reunia todos os erros e as superstições da nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo, mas não o dominava. Pelo contrário, era dominado. Assim, favorecido pelo meio, o Conselheiro realizava “o absurdo de ser útil. Obedecia a finalidade irresistível de velhos impulsos ancestrais; e julgando por ela espalhava em todos os atos a placabilidade de um evangelista incomparável” (CUNHA, 1987, p. 119). Agora o narrador d’Os Sertões indica uma hesitação “ora em prol, ora contra as partes da luta” (REGO, 2008, p. 14). Devido, talvez, à oportunidade de conhecer in loco o cenário da guerra e as peculiaridades de uma terra e de homens adaptados àquela maneira singular de vida, se comparada às relações cotidianas do litoral, Euclides conclui que “eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados... Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta. Entretanto, enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala” (CUNHA, 1987, p. 140). Uma mudança de postura de Euclides da Cunha em relação aos sertanejos está evidenciada. Todavia, o momento e as causas de tal reviravolta permaneceriam totalmente desconhecidos se não fosse a possibilidade de reler a história pela ficção. Assim, O pêndulo de Euclides revele-se uma narrativa híbrida entre as constantes e inacabadas facetas de romances históricos “à disposição dos romancistas interessados em reler o passado, sob perspectivas que ora se irmanam e ora se enfrentam com o discurso histórico já registrado” (FLECK, 2008, p. 88).
Algumas dessas faces do romance histórico na contemporaneidade podem ser apreendidas, por exemplo, após os estudos e as propostas conceituais apresentados por Aínsa (1991), Menton (1993), Hutcheon (1991) e Fleck (2008; 2011). Para Aínsa (1991, p. 83-5), principalmente a partir dos anos de 1970, configura-se uma nueva novela histórica latinoamericana diferenciada por dez características em relação ao romance histórico tradicional. De forma sintética, elas podem ser entendidas como: releitura da história pela ficção objetivando dar um sentido e uma coerência à atualidade desde uma visão crítica do passado; impugnação ao discurso legitimador instaurado pelas versões oficiais da história; multiplicidade de perspectivas a qual impossibilita o acesso a uma só verdade histórica; abolição do distanciamento épico; ironia e paródia, às vezes irreverência, ao reescrever histórias conhecidas, sempre com pitadas hiperbólicas e grotescas jogando com a criação linguística do anacronismo e do pastiche, dinamitando crenças e valores estabelecidos; superposição de tempos históricos diferentes; uso de documentação como respaldo à historicidade textual; variedade de modalidades expressivas; releitura distanciada, “pesadillesca” ou acrônica da história, refletida numa escrita paródica; manejo da linguagem como ferramenta fundamental. Menton (1993. P. 42-5) reduz as características do novo romance histórico a seis. Resumidamente: distorção consciente da história mediante omissões, exagerações e anacronismos; ficcionalização de personagens históricos diferentemente do modelo de Walter Scott; metaficção e os comentários do narrador sobre o processo de criação; intertextualidade; dialogismo, carnavalização, paródia e polifonia (conceitos bakhtinianos).
A categoria romanesca a qual Hutcheon (1991) denominou metaficção historiográfica tem como principal característica problematizar a representatividade escrita dos eventos, evidenciando os aspectos convencionais e arbitrários dos postulados históricos. Dessa forma, “a metaficção historiográfica procura desmarginalizar o literário por meio do confronto com o histórico, e o faz tanto em termos temáticos como formais” (HUTCHEON, 1991, p. 145). Já no romance histórico contemporâneo de medição, “percebe-se um intento de conciliação” entre os romances históricos ditos tradicionais e a modalidade dos romances históricos metaficcionais. Nesta última, segundo Fleck (2010, p. 45), “estão os romances classificados por Aínsa (1991) e por Menton (1993) como modelos do ‘novo romance histórico’, assim como as metaficções historiográficas plenas, conceito criado por Linda Hutcheon”.
Portanto, ao encontro dessas bases teóricas voltadas às peculiaridades do romance histórico contemporâneo – é necessário lembrar que nem sempre é possível vislumbrar todas as características das três vertentes apresentadas aqui num único romance, ou mesmo romances que se enquadram total e exclusivamente a uma delas –, buscar-se-á, a seguir, demonstrar os caminhos utilizados por Aleilton Fonseca para revelar aos seus leitores, além do pêndulo de Euclides, uma posição crítica sobre a situação atual dos canudenses. Estes, em certa medida, representantes de todos aqueles sobreviventes à margem dos interesses políticos, históricos e sociais no Brasil.         
                             
O pêndulo de Euclides

O francês Dominique, o poeta Alex e o narrador seguem, no carro deste último, em direção a Canudos naquele sábado, 6 de setembro de 2003, exatamente 106 anos após o início da faze final do ataque das tropas do governo. Mais adiante, apresenta-se comentários sobre a vegetação da caatinga e os pequenos sítios que lhes vão aparecendo. Nas proximidades da cidade de Tucano, “Alex comentou que ali por perto havia acontecido o primeiro choque da polícia com os conselheiristas. O fato ocorrera em 1893, num lugar chamado Masseté” (OPDE, p. 20). Todas essas informações de cunho geográfico, histórico e estatístico que vão sendo expostas no decorrer do romance, não destoam dos dados oferecidos pela historiografia especializada, nem da situação atual da região de Canudos. As partes construídas ficcionalmente são, especialmente, aquelas em que não há um parâmetro documental devidamente estabelecido e confiável. Desta forma, destacam-se como elementos fictícios a serviço da releitura da historia, de maneira mais relevante, a entrevista do narrador/personagem com o próprio Euclides da Cunha (OPDE, p. 70-5), a história e as reflexões surpreendentes de seu Ozébio (OPDE, p. 43-59; 138-159), e o julgamento pós-guerra em que participam a juíza História, os réus República e Antônio Conselheiro, o acusador Senhor Tempo, a defensora Senhora Circunstância, Euclides da Cunha e Rui Barbosa (OPDE, p. 165-186). As demais situações e personagens fictícias d’O pêndulo de Euclides parecem funcionar mais como expositores da cultura e da sociedade atual canudense, além de garantirem, naturalmente, a verossimilhança na urdidura do enredo.
Na estrada que os levaria até Canudos, por volta das duas da tarde, avistam os grandes “piquetes de cimento que demarcam e anunciam o Parque de Canudos, uma área protegida por lei [...]. Avistamos a cidade. E o famoso açude de Cocorobó, cobrindo o território onde surgiu e foi massacrado o arraial do Conselheiro” (OPDE, p. 22). O narrador lembra que o sertão continua sua história e a nova cidade de Canudos segue viva com 14 mil habitantes. No alarido típico de uma feira livre, os três amigos estacionam o automóvel e vão comprar água de coco na barraca de seu Estêvo de Madá, gentil vendedor que lhes indica e dá a direção da pensão da dona Elza, onde ficariam hospedados naquela rápida, porém recompensadora, estada em Canudos. Após a bela recepção oferecida aos visitantes, respondendo a algumas perguntas do narrador, dona Elza faz referência às várias festas anuais, todas ligadas á Igreja e à romaria de Canudos; às diversões do dia a dia que são às margens do lago na prainha de Canudos Velho; e, sobre os pratos da região, apresenta uma lista apetitosa. “Sem aguardar nova pergunta, ela arrematou: – Canudos tem tudo isso de bom, meu senhor” (OPDE, p. 31). Nos memoriais da cidade, os três amigos encontram o cruzeiro da igreja velha do Belo Monte, dois lotes de madeira – cujo carregamento não entregue acabou tornando-se o estopim da guerra –, vários exemplares da vegetação nativa e muitos outros objetos relacionados ao período dos conflitos. O poeta Alex e o responsável por um dos memoriais empreendem um debate acerca de gentes que mantêm em seus poderes lembranças materiais da guerra.
A visita ao campo de batalhas seria no dia seguinte. O narrador faz algumas perguntas que deixa o guia Domingos confuso. Este resolve levá-lo a casa de seu Ozébio o qual, se tivessem sorte, estaria de bom humor. Tiveram sorte. O velho os recebeu bem. Conversaria de bom grado desde que “se não for esse diacho de ‘pesquisa’. Vamos entrando. A casa é humilde, mas é dos amigos”. (OPDE, p. 41). Ao saber que o professor da capital queria obter informações sobre um tal Euclides da Cunha, engenheiro, jornalista e escritor, que estivera ali no tempo da guerra e que escrevera um livro famoso, seu Ozébio, que já havia falado muito, agora não falava mais. Numa advertência notadamente metaficcional, ou, conforme White (1995), meta-histórica, expõe o seguinte:

Entenda bem: o senhor me ouve, eu lhe digo, o senhor escreve, faz um livro. O senhor fica ainda mais o senhor. Daí fica importante, pega alta fama, até ganha um bom dinheiro. Possa ser. Não invejo. Até faço gosto. De hora em hora, suas melhoras. Mas, e se o senhor escreve sua ideia em cima de minhas falas? E eu, minhas prosas, meus versos, minhas palavras, tudo isso quase se apaga no seu livro. Ficam sendo só suas palavras, escritas e desenhadas em papel grã-fino, em folhas de livro caro. Se eu comprasse um livro desses, como ia fazer a feira? Então o senhor escreve, e o que conta no livro vem em seu nome. E o senhor, pessoa de bem, até me agradece no escrito. Eu vou ler, com minha pouca leitura, sem entender direito: o que o livro diz não é como eu tinha falado. Então, o senhor pesquisa nossas coisas e conta tudo com outras palavras, não as da gente, mas a do seu jeito dificultoso? E nosso povo continua como antes, sem direito de falar sua fala, nem rabiscar seu próprio livro. Eu vou lhe falar, pois conheço que se sente avisado. Eu vi, tirei uma mira, daí matutei: tenho certa confiança nos olhos do senhor... Mas uma coisa eu lhe peço: não falseie minha prosa com bonitezas de suas palavras lordes. O que eu falar, falei. O senhor anote o meu justo falado. (OPDE, p. 44).

Assim, obedecendo ao pedido de seu Ozébio, o narrador descreve fielmente as palavras do velho canudense que, sobre Euclides da Cunha, disse apenas que ouvira falar muito em seu nome. “Ele veio aqui pra anotar tudo que se passava e mandar pro jornal de longe, da cidade grande. Se já era grande naquele tempo, imagine hoje. A gente vê pela televisão: um lugar sem limite, cheio de bonitezas e desgraças” (OPDE, p. 45). Seu Ozébio, na página seguinte, ainda relata questões relativas à dicotomia sertão versus cidade, às histórias passadas de pai para filho e de avô para neto. Nesse ponto faz outra menção a Euclides que, segundo seu avô, “era meio de parte com os de farda, porém tinha lá umas diferenças com eles”. Para uma pesquisadora da Universidade que o visitou certa vez, “contei pouca coisa, que já naquele tempo eu me fazia de deslembrado. Mas ao senhor eu vou contar” (OPDE, p. 47). Desse modo, lembra-se dos motivos que levaram os seus avós a seguirem para Belo Monte; dos jagunços, coronéis e os governos de longe; das leis e dos escritos contrários aos sertanejos; das diferenças entre Canudos e Belo Monte; da construção da igreja de Santo Antônio, a vida e as leis em Belo Monte; do padre que vinha celebrar missa; dos negócios de couro de bode e lã de carneiro; da estada de frei Monte Marciano em Belo Monte; e do mandonismo do coronel Dantas. Finaliza desafiando o narrador a não escrever um livro que seja como os outros. Provocando-o, de certa forma, a estabelecer um pêndulo, ensina que o juízo só muda se a pessoa “aprender os saberes ocultos da vida. O senhor medite bastante, que disso tem muita precisão. Depois espie nos seus próprios olhos e pergunte ao espelho quem é o senhor... Se achar a resposta, encontra o caminho” (OPDE, p. 59).
De volta à pensão, em algumas horas de insônia, o narrador apanha seu exemplar d’Os Sertões, abre seu laptop e revisita “A nossa Vendeia” e as prédicas do Conselheiro. Deita-se e, anacronicamente, tem um sonho cujo cenário era a estação ferroviária do largo da Calçada em Salvador e o tempo histórico era o dia em que Euclides da Cunha embarcava rumo a Canudos. Ali se estabelece uma entrevista. Numa das respostas, Euclides afirma que “esses nossos patrícios do sertão, de tipo etnologicamente indefinido ainda, refletem naturalmente toda a inconstância e toda a rudeza do meio em que se agitam” (OPDE, p. 72). Noutra, comenta que “os sertanejos de Canudos representam para a República o mesmo que os camponeses da vendeia significaram para a Revolução Francesa” (OPDE, p. 73). Euclides ainda sentencia convictamente que “a vitória é certa e absoluta. A morosidade das operações é inevitável, pelos motivos rapidamente expostos. As tropas seguem lentamente, mas com segurança, para a vitória. Sem dúvida, a República triunfará” (OPDE, p. 75).
Essa personagem histórica de opiniões semelhantes, tanto no romance de Aleilton Fonseca como segundo se conhece dela nos registros oficiais da história, é a mesma que, anos depois, na significação integral da palavra, denuncia o crime republicano em relação ao massacre dos canudenses. Mudança de postura um tanto incompreendida por mais de um século, até ser esclarecida pelas verdades das mentiras de um romance histórico. Não se sabe se o relato de seu Ozébio exposto ao narrador deveras aconteceu. Afinal, os romances mentem. Contudo suas mentiras são “sólo una parte de la historia. La otra es que, mintiendo, expresan una curiosa verdad, que sólo puede expresarse encubierta, disfrazada de lo que no es” (VARGAS LLOSA, 2007, p. 16). Assim, após discorrer sobre vários aspectos relacionados aos canudenses e à guerra de Canudos como as prédicas do Conselheiro, as quatro expedições, denominadas primeiro, segundo, terceiro e quarto fogos – sob o ponto de vista de um conselheirista –, o narrador recebe um convite para comparecer à noite, sozinho, à casa de seu Ozébio. O sertanejo faria “uma revelação que me deixou pasmo, boquiaberto, sem palavras. Ouvi e respeitei como verdade. Nas dobras e nos arremates das vivencias e das palavras” (OPDE, p. 139).
Segundo seu Ozébio, um dos conselheiristas, à busca de água que minguava no arraial, ao fugir das balas dos soldados e se encontrando nas imediações do acampamento do exército, “teve receio de ser descoberto. Rastejou com cuidado até a barraca onde avistara a sombra de uma pessoa. Achou que poderia se arriscar” (OPDE, p. 141). A sombra era a de ninguém menos que Euclides da Cunha. Neste,

[...] entre a surpresa e o pavor, bateu-lhe o senso da oportunidade. Curioso, via ali um raro espécime de homem, em carne e osso, suor e pavor escorrendo nos olhos esbugalhados. Um canudense vivo! O coração pulsando, a veia saltada de medo e coragem. Então, o jornalista percebeu rápido o que tinha diante de si e de sua pena. Era uma dádiva do acaso, uma fala viva perante seus olhos e suas anotações. Precisava desse homem com vida – para estudar, inquirir, documentar. Tinha muito a ouvir e a analisar, para entender melhor a alma daquela gente. Precisava protegê-lo, pois o queria vivo e, se possível, longe dali, tranquilo e seguro, para responder perguntas e contar coisas que se passavam no coração do arraial, aonde jamais chegara um soldado ou um repórter (OPDE, p. 142).

Ocultado à inquirição de uma sentinela que foi averiguar um barulho que ouvira na barraca do jornalista, o sertanejo, advertido de que se saísse dali seria descoberto e morto, acaba por responder a pregunta já duas vezes repetidas: “– Zé Ozébio, seu criado, com as graças de Deus e do Conselheiro” (OPDE, p. 143). Driblando a segurança, na companhia daquele canudense e de uma criança, presente do comandante, “no dia 3 de outubro, dois dias antes do final da guerra, Euclides da Cunha partiu de Canudos” (OPDE, p. 145). Já em Salvador, onde permaneceu por alguns dias, Euclides é recebido por alguns integrantes do Comitê Patriótico. Entrega o menino de seis anos  à guarda de um casal e resolve “manter Zé Ozébio consigo” (OPDE, p. 147). Nos primeiros dias permanecem em silêncio e saúdam-se rapidamente. “Sentiam-se pouco à vontade, mas ao mesmo tempo queriam estar sempre juntos, compartilhando uma jornada breve no tempo e longa na vida” (OPDE, p. 148). À noite, Zé Ozébio rezava o terço pensado em seu povo enquanto Euclides, às vezes parando para observá-lo, escrevia inventando frases e explicações.

Eram a fé e o saber que se tocavam, tateando um ponto em que pudessem fluir e dialogar, reajustando os rumos de suas vidas. Zé Ozébio jamais ia deixar de ser um sertanejo de fé e de honra, marcado pela tragédia da vida e da guerra. Jamais compreenderia o motivo de tantos tiros, tantas mortes, tanta destruição.  E agora ele se deixava conduzir pelas mãos e pelos gestos daquele doutor, a quem entregava seu destino. Euclides jamais ia deixar de ser um homem de saber e de honra, marcado pela tragédia do sertão e da vida. Jamais aceitaria os motivos de tantos crimes, tantos assassinatos, tanta destruição. Desde a aparição inesperada daquele sertanejo em seu caminho, no meio do caos, fora fulminado por inúmeras dúvidas. E seu pensamento se revolvia célere. Algumas certezas se desmanchavam no ar. Outros conceitos se enraizavam, fazendo brotar convicções que pareciam novas e, no entanto, já existiam adormecidas em seu íntimo. Ele cumpria um rito de passagem. Isso abalava seus conhecimentos e dava à suas palavras outros olhares e novo rumo à sua pena. Entrava na posse de novos saberes, desentranhados não somente dos livros, mas também da terra, do corpo, da amizade e da experiência (OPDE, p. 149).

Entre a cientificidade de suas leituras e a experiência do Brasil real, adquirida na rápida convivência com Zé Ozébio, Euclides da Cunha já não era o mesmo determinista de “A nossa Vendeia” nem o entrevistado pelo narrador antes de seguir a Canudos. Agora, assim como os escritores latino-americanos conscientes de sua condição intermediária entre as influências estrangeiras elitizadas e o emaranhado cultural, social e religioso que nunca deixou de estar à margem dos interesses econômicos e políticos da oficialidade da América Latina, Euclides da Cunha redirecionaria o discurso d’Os Sertões para um entre-lugar. Um livro “entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão” (SANTIAGO, 2000, p. 26). Quebrado o gelo e construída uma amizade profunda entre aqueles dois homens aparentemente tão díspares, Euclides segue sua viagem e Zé Ozébio, que esperou a situação melhorar, volta ao sertão guardando um segredo: “– Você é a única pessoa que tem ciência de minha atitude de protegê-lo em Canudos. Isto será um segredo de honra. Só deve ser revelado depois de nossa morte, por um filho ou neto seu” (OPDE, p. 154). Seu Ozébio é esse neto que vê num professor da capital, apaixonado pela leitura d’Os Sertões e certo de que havia ainda muito a dizer além das histórias assentadas nos livros, o interlocutor ideal a comungar do segredo d’O péndulo de Euclides.                                                    

Considerações finais

Repleto de revelações e quadros sugestivos, possibilitados pelas liberdades ficcionais da escrita do romance, O pêndulo de Euclides apresenta a releitura de uma história que ainda ecoa sob diferentes matizes na realidade brasileira contemporânea. Sugere uma mediação entre as histórias da Guerra de Canudos, largamente difundidas nos mais variados formatos de expressão escrita e oral, e a visão reelaborada de uma inquietação obscura. Assim, utilizando-se de estratégias das ficções históricas estudadas e apresentadas por Aínsa, Menton ou Hutcheon, o romance de Aleilton Fonseca busca dar um sentido e uma coerência à atualidade desde uma visão crítica do passado. Apresenta um personagem histórico com relevância central à narrativa. Faz uso consciente de recursos como anacronismo e intertextualidade, além de problematizar a representatividade escrita dos eventos. Entretanto, por não sugerir uma desconstrução exageradamente paródica dos pressupostos teóricos tradicionais, nem pretender unicamente, ao modo das metaficções historiográficas plenas, desmarginalizar o discurso literário em relação à “veracidade” cientificista de algumas correntes históricas tradicionais, O pêndulo de Euclides se enquadra em grande medida às características do romance histórico contemporâneo de mediação (FLEKC, 2008; 2010; 2011).
Muitas informações recorrentes na historiografia referente à Guerra de Canudos, como já mencionado, são respeitadas e reproduzidas, e um aspecto que poderia ser entendido como reverência a Os Sertões, de Euclides da Cunha, também está evidente no romance. Contudo, não se pode encará-lo como uma simples reprodução daquilo que já está registrado e resolvido em mais de um século de histórias. Por meio das experiências obtidas com a visita daqueles três amigos aos sertões da Bahia, em pleno século XXI, dos vieses sugeridos pelo narrador e das revelações intrigantes de seu Ozébio, O pêndulo de Euclides apresenta-se muito bem urdido e repleto de imagens. Evoca ecos do passado e instiga reflexões críticas sobre o Brasil atual para além da literatura. Portanto trata-se de um texto mediador entre a História, suas lacunas, e as probabilidades de preenchê-las utilizando-se da ficção.             

Referências

AÍNSA, Fernando. La nueva novela histórica latinoamericana. In. Plural. 240. p. 82-85. México, 1991.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.

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MENTON, Seymour. La nueva novela histórica de la América Latina, 1972-1992. México: Colección Popular, 1993.

REGO, Djair T. Polifonia, dialogismo e procedimentos transtextuais na leitura do romance La guerra del fin del mundo, de Mario Vargas Llosa: pródromos e epígonos. Tese. João Pessoa: UFPB, 2008.    

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WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. Trad. MELO, José Laurêncio de. São Paulo: Edusp, 1995.


[1] Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado, área de concentração em Linguagem e Sociedade. Bolsista Fundação Araucária. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel. Paraná. Brasil. E-mail: adenilsonbar@gmail.com
[2] Professor Adjunto da UNIOESTE/Cascavel na Graduação e Pós-graduação em Letras nas áreas de Literatura e Cultura Hispânicas. Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder do grupo de pesquisa “Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura”. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de Literatura e Cultura. Coordenador do Projeto de Pesquisa Básica e Aplicada “Gêneros ficcionais híbridos da modernidade: outros olhares sobre o passado da América”, financiado pela Fundação Araucária. E-mail: chicofleck@yahoo.com.br

[3] Doravante, as citações referentes ao livro O pêndulo de Euclides serão indicadas pela sigla OPDE, seguida do número da página.
[4]  O áudio está disponível no blog do autor: aleilton.blogspot.com
[5] Texto publicado no jornal O Estado de São Paulo em duas partes: a primeira data de 14 de março e a segunda de 17 de julho de 1897. Disponível em euclidesdacunha.org.br



Meses atrás, recebi um e-mail animador de Adenilson B. de Albuquerque, no qual dizia que o blog estava sendo muito últil em sua pesquisa sobre a obra de Aleilton Fonseca. Em novo contato ele diz:
"Sou Adenilson, outro dia (já há algum tempo) lhe escrevi informando sobre a utilidade do blog de Aleilton Fonseca aos meus estudos referentes aos romances que abordam o tema da Guerra de Canudos. Escrevi um artigo apresentando e discutindo alguns aspectos d'O pêndulo de Euclides. (...) Deixei o texto guardado até semana passada, período em que o apresentei e publiquei num evento aqui do Paraná. O pessoal da sala ficou curioso ao saber do romance e do autor.   
Dessa forma, segue em anexo o artigo para que sirva pelo menos como elemento de arquivo entre os estudos da obra de Aleilton Fonseca a qual, estou seguro, será cada vez mais (re)visitada."
 
Agradeço a gentileza em disponibilizar seu artigo para os leitores do blog.