terça-feira, 24 de novembro de 2009

Próximos eventos...

Projeto Travessia das Palavras

Local: Biblioteca Central de Jequié - BA

Data: 28/11/09

Horário: 19h e 30mim

Realização: Academia de Letras de Jequié

Não deixem de estar nessa Travessia encantada pela prosa e poesia do Professor e escritor ALEILTON FONSECA!




Seminário Euclides da Cunha: Cem anos Sem

Local: Juiz de Fora - MG

Data: 25, 26 e 27/11/09

Realização: Museu de Arte Murilo Mendes da UFJF e o Cenrtro de Ensino Superior de Juiz de Fora

Aleilton Fonseca se faz presente com a palestra: CANUDOS E O PÊNDULO DE EUCLIDES: Novas vozes, outras viagens, no dia 27 às 17 h.

Não deixe de adentrar a história, a literatura e o sertão ao lado das vozes que não deixam calar a voz de Euclides, a voz do sertão!

Clique na imagem para mais detalhes.

sábado, 14 de novembro de 2009

Entrevista com ALEILTON FONSECA , Revista Muito

Foto: Irachema Chequer | Ag A TARDE

Saiu na revista MUITO, do jornal A Tarde, do domingo dia 08/11/09, no "Entre Aspas" uma entrevista com Aleilton Fonseca, a qual segue um trecho.


Por: Kátia Borges

Leia trechos inéditos da entrevista com o escritor Aleilton Fonseca, autor de Nhô Guimarães e O Pêndulo de Euclides.

Embora professor, mestre e doutor, você parece manter-se longe do “encastelamento”, da “torre de marfim”. Que análise faz da cena literária baiana, com o qual interage e que conhece bem?
A torre de marfim é uma prisão. A ação literária precisa ter uma dinâmica coletiva, pois a literatura é um acervo de saberes para ser compartilhado. A cena literária baiana é muito produtiva. Mas falta ainda na Bahia uma política eficiente de formação de leitor e de distribuição do livro, de modo a elevar os índices de leitura e de formação de acervos. Os autores baianos encontram muita dificuldade para obter reconhecimento em sua própria terra. O reconhecimento tem de vir primeiro do centro-sul, o que os obriga a lutar por editoras do Rio e de São Paulo para existirem nas livrarias. Isso é uma luta árdua e nem sempre chega para todos, nem é suficiente para projetar seus nomes. O trabalho do escritor é árduo e os resultados não são garantidos. Creio que deveríamos nos unir, em busca de uma solução coletiva. Afinal, o brilho do céu não se faz com uma ou duas estrelas, mas com a luz das diversas constelações.

Eu o conheci primeiro pelos contos e pela poesia. Qual o espaço que ocupam hoje em sua vida?
A poesia e a ficção são importantes no meu dia a dia de escritor, professor e pesquisador de literatura. Publiquei livros de poesia, ensaios, contos e romances. Participo de várias antologias nacionais e algumas internacionais de contos e de poesia. É claro que a ficção me trouxe um reconhecimento maior e me firmou como escritor, tornando-se a vertente mais forte de minha produção literária. Mas uma coisa é certa: prefiro ser romancista.

Você se considera um autor sertanejo, em contrapartida a ter a literatura urbana como objeto de pesquisa?
Sou um escritor, no sentido substantivo do termo. Na poesia e na prosa, escrevo sobre cidade e sertão, com forte inclinação para os temas interioranos, mas em consonância com as questões urbanas. Estou em trânsito, numa viagem que a cultura faz cotidianamente, entre universos em diálogo constante, tenso, rico e indispensável. O que interessa são as questões, os valores e as soluções que precisam ser discutidos, compartilhados e resolvidos. O campo tem muito a ensinar à cidade e vice-versa.

Como se sente ao chegar aos 50 anos de idade e 30 de vida literária?
Sinto-me muito bem, pessoal e profissionalmente. Tenho 12 livros publicados, além de participar de vários outros. Já surgiram vários artigos, ensaios e resenhas sobre meus livros. O Instituto de Letras da UFBA fez um seminário comemorativo de meus 50 anos, através do projeto O escritor e seus múltiplos. O evento foi organizado pela Profª Antonia Herrera e pela bolsista Lisiane de Oliveira Souza, em reconhecimento ao meu trabalho. Como escritor, sinto-me reconhecido e gratificado.

Quais projetos mobilizam agora a sua atenção?
De agosto até novembro, estou cumprindo uma agenda de 16 viagens, para participar de eventos literários, fazendo palestras, dando minicursos e lançando o romance O pêndulo de Euclides. Ao final, terei ido a 6 estados, a várias cidades. Ao lado disso, dou minhas aulas de literatura na UEFS e participo das atividades da ALB. Tenho alguns projetos de livros em andamento, em crônica, conto, romance, poesia e ensaio. Eu trabalho com literatura todo dia, o dia todo. Assim, sinto-me útil e me realizo como pessoa. No mais, é tocar a vida, tendo a literatura como alimento, realidade e sonho.


Disponível em: http://revistamuito.atarde.com.br/?p=3532. em 14/11/09

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A última partida



Aleilton Fonseca

Num mais que de repente, Linco ia se levantar dali de um pulo, com sua risada de mangação. A certeza nos aliviava, por hora, de uma dor mais funda. Pois se ele era tão fingido, nos metendo cada susto! Era só um esperar, os adultos se preparassem, que nem precisava lotar a sala de tanta gente para o maior efeito. Ele estava debaixo do lençol, bem quietinho, sobre o banco de madeira rústica. A gente queria ver de perto, era difícil.

Linco era assim mesmo, imprevisível, sempre que presepando coisas. Na maré, que corria ao fundo de nossas casas, ele inventava ondas. De uma vez das tantas, tomávamos um banho num fim de tarde. De mergulho em mergulho, ele sorveteu-se nas águas; nós esperamos que voltasse à superfície... e nada! Caímos em desespero:

– Linco sumiu, gente!

– Ele se afogou!

Os companheiros e eu tremíamos de assustados, quase nem tomando o ar correto, a gente escarafunchava as águas, nos mergulhos de busca. Abríamos os olhos, que ardiam, mais do que salinados, já com as lágrimas brotando.

– E agora?

Um silêncio nos assaltou, a maré nos pareceu monstruosa, doida para nos engolir também. Mergulhar desse jeito afoito dava logo um cansaço. A gente precisava boiar juntos, de mãos dadas, desfadigar. Então, ouvimos o desgramado, que saboreava a maior gargalhada, se enganchando nos galhos do manguezal. Ele prendera o fôlego, nadara por debaixo, voltando à tona escondido nas ramagens. Tudo isto um apronte só, o tinhoso, para colher de nós uns risos sem graça entre a raiva e o alívio.

Agora, ali na sala, cadê que não se denunciava logo em nova traquinagem? Acontecera de supetão, corremos à casa de Linco, depois de um certo rebuliço havido por lá. De logo a gente não dava passagem ao real, ele deixasse de manha! Isto já estava para lá de um despropósito. Era um demais, pois olhem o estado da mãe, coitada!

Estávamos atordoados, acotovelando-nos entre os adultos. Encostados à parede, a gente se firmava na ponta dos pés. O manhoso se levantaria dali – é claro! – dando o maior susto no povo. Era o caso para umas boas risadas. Linco estava para além das margens, nos seu exagero. Depois, depois...

Mas, que manchas eram aquelas, de um modo avermelhado, ensopando uns quantos pontos do lençol? A gente espichava-se em mais um apuro de prestar atenção. Linco, ali debaixo, encoberto, a mãe dele se desconsolava num canto, amparada no abraço da irmã. Dona Aurora se revelava em desespero, uma noite imensa invadia seu rosto e já clareava o nosso entendimento. Houvesse mais coração para tanto pulo, a gente se via à beira de um choque. Mas como podia ser isso com ele? E com cada um de nós também podia, pois lençol, banco e sala todos tínhamos em casa.

Era um sábado. E amanhã haveria o jogo de bola, nosso time todo montado nos acertos de Linco. Era a final do campeonato de bairros, que a gente mesmo organizava para distrair aos domingos. Ponta da Pedra, nosso esquadrão azul e branco, trajando as camisas que a Prefeitura nos dera, por pedido escrito e insistências de Linco. E o adversário não era mole! Enfrentar as feras do Malhado, uns até mais velhos que nós, e bons de bola, era fogo. Mas Linco bem que traçara uma tática nova. Como líder e goleador, garantia que íamos ganhar o troféu. E até fizera aposta de honra contra o dono do time inimigo. Quem perdesse teria de tomar banho no rio, todo nu, calado, sem poder revidar a gracejos nem gozações.

Agora, porém, eis que Linco... Mas como foi? Por quê? De déu em deu, a história se desatava nos sussurros, mas, para a gente, não assentava por certo haver o amigo em tal estado. Linco fora cedo para a praia desafiar as ondas, como gostava de fazer. Na volta, acabara recolhido naquela situação.

Este fato era difícil aceitá-lo, aquilo é que não podia! Linco desistisse do mau gosto, fosse dormir mais cedo que amanhã haveria um jogo duro. O time do Malhado não alisava, com suas jogadas e tramóias, dava de seis a zero na gente com facilidade. Mas, isto, só se Linco não jogava. Era quando ele ia cumprir as ordens da mãe, fazer lição de casa, estudar para as provas, sem outro jeito de escapar.

– Primeiro a obrigação, depois a distração, – era o lema de casa.

Sem Linco nosso time era pato. Com ele sobravam as diferenças. Sob o seu comando a gente não se intimidava. Ele arranjava sempre uma das suas mais novas artimanhas. De cochicho em cochicho nos dava todas as dicas, nos colocava na função certa em cada parte do campo. A gente perdia por placar apertado, sem fazer feio. Outras vezes íamos vencendo, com sorte e com jeito. Foi assim, de gol em gol, chegamos à decisão do torneio, para surpresa de todos.

De uma outra vez, estávamos abatidos no aperto de cinco a zero, numa partida de seis. Era justo contra o temível Malhado. Perder de seis a zero, uma lavada para dúzia e meia de gozações! Nosso craque esmoreceu, comentava alto para todos:

– O jogo está perdido, não adianta! – e atirava a bola para o lado, atrasava-a para o goleiro.

Linco era o único jogador de nosso time que inventava medo aos adversários. Mas, naquela altura do jogo, parecia preso por um cansaço. Perambulava em campo, quieto, sem dar parte na disputa. Os caras do Malhado relaxaram, deram por ganho o combate. Era só questão de a qualquer momento marcar o gol de misericórdia e ir mergulhar no rio, zombando de nosso “timinho”. Eles começaram a fazer firulas, com toques desconcertantes e às gargalhadas, dando um banho de olé na gente. A platéia de fora se deliciava. Os demais meninos de nossa rua, entre aflitos e conformados, se contorciam. De repente, apertamos a marcação, a bola deu rebote e foi quicando de flerte com Linco. Ele a tocou como quem não quer nada e, sem mais nem menos, inventou um chute torto e certeiro. No ângulo. Este gol nem o comemoramos dada a indiferença do próprio artilheiro.

– É o gol de honra – ele murmurou, cabisbaixo.

Os meninos de Malhado nem sequer se assutaram. Continuaram desperdiçando as chances de vencer, mais interessados em nos dar aqueles dribles, colocando a gente na roda de bobo. Lá vai, de novo, a bola lhes escapava. Linco apanhou a sobra e lá se foi nas fintas; deu um chute, agora chocho e enviesado, deixando o goleiro com cara de besta.

– Este é para a goleada não ficar muito feia – ele comentou, sem alarde.

A coisa ficou por conta. O pessoal do Malhado se ressabiou, atirando-se todo ao ataque, seis a dois ainda renderia uma boa pilhéria. Já o nosso goleiro, mais animado, se pôs a subtrair os graus dos piores ângulos. E a bola passava raspando, mas não entrava. Eu, reles zagueiro, com as canelas ardendo, me afogava no suor. Chutava para qualquer lado, procurando acertar as moitas de capim bravo, que dava tempo de respirar um alívio. E Linco, rente ao meio de campo, estava só que olhava o jogo acirrado sobre nossa defesa, num desinteresse de irritar. Lá um lance, a bola rebateu em minha cabeça e se foi aos caprichos de Linco, num contra-ataque fulminante. Ele rompeu nas costas de um zaqueiro que perseguia as suas pernas serelepes. Não houve senões, o goleiro avançou firme, mal-encarado. Linco ziguezagueou-lhe um drible e o plantou na lama, com a bola na rede.

Cinco a três era já um acinte, os caras do Malhado endureceram de vez, dando-nos rasteiras e pontapés explícitos. E já se desentendiam em campo, trocando entre si uns feios xingamentos. Linco, sempre em surdina, de cócoras, em campo, colhia uns matinhos e os mastigava, todo matreiro. Num avanço da defesa, o Malhado quase lavrava a fatura, mas nosso goleiro operou a mágica com as pontas dos dedos. A bola sobrou na minha frente, eu a chutei a esmo, sem querer encontrei Linco e já fui vibrando contrito, o gol era questão de segundos... pronto! O jogo em quase que empate. Cinco a quatro feria a honra do Malhado. Eles deram a nova saída, com as caras entufadas. O jogo passava dos limites. Nesta demora, as cigarras já nos recomendavam recolher a bola, a tarde já se ia turvando.

Já entendíamos o plano de Linco: ele se fazia de morto para ser visitado. Os malhadenses discutiam forte, erravam passes, os afobados, numa ânsia de nos liquidar de vez com o sexto gol. Armaram um abafa sobre nós, chutaram um petardo venenoso, nosso goleiro espalmou para escanteio. Linco intuiu o lance e recuou para nos ajudar. A bola alçada à nossa área, ele a matou no peito e a pôs no chão em desabalado rompante. Os caras, desesperados, gritavam para os da defesa:

– Pega! Agarra! Não deixa!

Qual o quê?! Linco rodopiava, deixando os zagueiros para trás, pulava para escapar de uma rasteira, se retorcia todo mole para fugir dos agarrões. E pimba! Entrou com bola e tudo, deixando o goleiro órfão e humilhado, prestes ao choro. Eis aí, mestre Antonio: o jogo estava empatado! Os “craques” do Malhado caíram de suas torres, fulminavam-se uns aos outros com raiva e nos assassinavam com o olhar. Culpavam a defesa e o goleiro, que maldiziam os atacantes. A gente nem tico nem taco! Era só tocar a bola, de olho nas treitas de Linco.

– Quem fizer um gol ganha! - o maioral deles vociferou o óbvio.

A gente conspirava em silêncio. O Malhado se perdia de vez em campo. Mas insistia, desordenado, em busca do último gol. Nossas pernas se multiplicavam, na resistência. Mais tarde, um menino vinha decretado com um aviso. A mãe de Linco o estava chamando, era a ordem de ir para casa. A gente queria aproveitar a chance de vencer, mas sem ele no ataque não dava.

– Vamos ganhar logo, que eu estou de partida.. – ele disse, bem animado.

Linco correu até a defesa, pediu a bola ao nosso goleiro, levantou a cabeça com ímpeto e irrompeu contra o time do Malhado. Ele sorria e avançava. Eu o segui de perto, vibrando. Na minha frente desenhava-se um ziguezague: driblou um adversário, dois, três quatro... Arremeteu contra o goleiro deles, que saía do gol fechando o ângulo. Linco parou, como só ele parava, deu um toque sutil e saiu de lado. O gol estava diante dele, entregue e escancarado. Houve ali uma expectativa, o jogo já terminava. E ele me ofertou a bola: Terto, faça o seu gol!”. Eu, simples zagueiro, jamais provara aquele sabor. Então eu mesmo rolei, bem de levinho: e a bola foi sorrir no fundo da rede.

Todos corremos para ele e gritávamos gol e nos abraçávamos, era a virada de seis a cinco. O invicto Malhado enfim derrotado, diante da platéia surpresa ao redor do gramado. Contra a nossa festa, o líder deles jurou vingança, de cara amarrada:

– Na próxima vocês vão ver!

Saíam de campo sem graça, mais que inconformados. A gente degustava a justa vez de zombar:

– Oh, timinho de patos

E agora? Amanhã era a final, contra o ferido time do Malhado, cheio de brios pela revanche, com um ressentimento bairrista demais. Prometiam nos bater de seis a zero. Eis que era chegada a hora, e Linco naquele pior estado. A par de tanta tristeza, as nossas lágrimas prosperavam, renovando-se nas lembranças daquelas glórias repassadas. De nossa parte, era a vez primeira de enfrentar esse tipo de jogo, totalmente vencidos. E cada um de nós compreendia, a seu modo e tanto, o quanto gostávamos daquele menino. No entra-e-sai da sala, ninguém podia efetuar o total que sofríamos. Sem o nosso amigo, sentíamos o vazio de uma enorme parte de nós mesmos. Tínhamos muita pena de Linco não jogar aquela última partida. Ele, com tanta espera e vontade, planejara a grande vitória. Um ou outro de nós se arriscava, em meia voz, para o maior silêncio dos pares:

– E o jogo de amanhã?

Primeiro concordamos com a idéia de que não haveria o jogo. Os caras do Malhado tinham de compreender o respeito devido a Linco, o motivo de força maior. Aliás, que jogo teria graça para nós, naquelas circunstâncias? Estava, então, acertado. Passava da meia-noite, de qual a qual íamos tombando de sono. Cada um procurou seu caminho de casa.

No domingo, pela manhã, nos reuníamos em frente à casa de Linco. Vinha então a embaixada do Malhado em nossa petição, naquele uniforme grená desbotado de sempre. Cadê nosso time? Era hora do jogo. Logo explicamos o fato, eles se concentraram no silêncio, com algumas perguntas esparsas. Depois entraram para ver o nosso amigo, já composto entre flores, perfilaram-se com respeito e tristeza. Não havia ânimo para a partida, com tal desfalque em nosso coração.

Todos de volta ao terreiro, daí batíamos uma bola solidária, numa roda de pé em pé, comungávamos a dor daquela tragédia. Num momento em que a bola resvalou da roda, fugindo de controle, veio dos amigos do Malhado uma proposta:

– Vamos jogar a partida – um deles se aventurou, meio que experimentando.

– Não dá – cada um de nós respondia, em consequência perfeita.

Eles insistiam que jogássemos em homenagem a Linco. Haveria um minuto de silêncio. Eles queriam o jogo, mas não lhes víamos nenhum sinal de revanche. Era razoável, de olhar em olhar nos entendemos: a gente jogava. Mas, com uma condição: seria a partida de um só gol. Quem marcasse primeiro ganhava o torneio, com respeito, sem festa nem gozação. Este jogo de futebol não podia demorar, pois sabíamos que, logo mais, Linco seria levado para outro campo. E todos o acompanharíamos em sua última partida.

– É o nosso último jogo. Sem Linco, o nosso time acaba – alguém murmurou e todos acenaram que sim.

Vestimos o uniforme do time, em azul e branco, para o jogo final. A camisa de Linco ficou estendida no chão, próxima ao campo, invocando a sua presença. O juiz, que vinha do bairro Pontal, depositou o troféu sobre a camisa dele. E nos convocou ao meio do gramado. Depois do minuto de silêncio, que varou mais que sessenta segundos, demos a saída de bola e nos pusemos em disputa.

Era um jogo estranho, sem o mínimo ânimo de ambas as partes. O pessoal do Malhado nos dominava, mas chutava sem força, parecia que sem querer marcar o gol. Dava vontade de parar a partida, lagar aquilo de mão, ir velar os últimos momentos de Linco. Após longos minutos madorrentos,os nossos oponentes inprovisavam de novo:

– Vamos disputar pra valer, gente!

Outro de lá lançou um ajuste: o troféu ganhasse o nome de Taça Linco. E o tento da vitória seria o “Gol Linco de Ouro”. De pronto concordamos, isto trazia um novo significado, valia a homenagem de nosso esforço. Abraçados em campo, reafirmamos a senha da vitória que o próprio ausente nos ensinara. Em seu nome, nos renovávamos com a vontade de vencer.

A partida reiniciou-se com outro espírito. O Malhado mostrava-se bem melhor, correto e persistente, em busca do gol. Para nós, restava resistir e lutar por honra, pois agora sentíamos Linco entre nós, suas palavras de incentivo e ensino nos alcançavam, minando de nossa memória.

Mas o empate persistia em zero a zero, quase à hora de Linco partir. Eu me senti tocado pelo desejo de oferecer aquela taça ao amigo, antes que a luz do mundo lhe fosse apagada para sempre. Então, deixei minha posição de defesa, me postei no lugar em que ele ficava, no todo que arisco, ao largo dos lances do jogo. A bola haveria de me procurar ali, com saudades do seu preferido. E enquanto aguardava o momento, eu imaginava um lance, um jeito dos que Linco sabia.

Os companheiros pareciam entender a tática, pois embarcaram num modo manhoso de chutar a bola, sempre que conseguiam, com muito esforço, tomá-la dos craques do Malhado. Do meio de campo, eu via o terreiro da casa, o povo já ia se aglomerando para o enterro. Os outros meninos, tão entretidos, não perceberam logo. Eu, sim, pois alheava-me da disputa e fiscalizava o movimento das pessoas minuto a minuto. Era urgente encerrar o jogo, que Linco estava de partida. Baixou em mim uma agonia, era uma tristeza, deu-me um aperto no peito, as lágrimas suadas me queimavam os olhos. Gritei, dentro de mim mesmo:

– Linco, não pode ser! Levante daí, venha jogar com a gente!

Corri até a defesa, pedi a bola ao nosso goleiro. Levantei a cabeça com ímpeto e irrompi contra o time do Malhado. Eu sorria e chorava. Na minha mente desenhava-se um ziquezague: driblei um adversário, dois, três quatro... Arremeti contra o goleiro deles, que saía do gol fechando o ângulo. Parei, como só Linco parava, dei um toque sutil e saí de lado. O gol estava diante de mim, solidário e desamparado. Houve ali uma expectativa, o jogo já terminava. E eu lhe ofertei a bola: “Linco, faça o seu gol!” Então eu mesmo rolei, bem de levinho: e a bola foi chorar no fundo da rede.

Disponivel em: http://www.panoramadapalavra.com.br/conto49.html acessado em: 10/11/09