sábado, 24 de abril de 2010

Convite 3 x Criaturas Cênicas‏...Reapresentação de Nhô Guimarães no Sesi em Salvador




Não deixem as noites de Quintas e sextas-feiras de maio sem uma boa programação. Vá ao teatro Sesi em Salvador ouvir os mais lindos "causos" do sertão com a peça Nhô Guimarães!

Convide os amigos e se renda aos encantos desta bela produção! Depois passem aqui e me digam o que acharam...

Além desta, outras peças teatrais podem adentrar as suas noites...confiram no cartaz!


domingo, 11 de abril de 2010

O Canto de Alvorada


O dia já clareava, com os avisos dos pássaros. A hora certa do canto de Alvorada. Era um belo galo, senhor absoluto da primeira hora da manhã. O nome era um batismo de fé num futuro de glórias. Alvorada, desde frangote, já dominava o terreiro: distribuía bicadas nas canelas dos galinhos que ousassem desafiá-lo. Mestre Ambrósio, anos a fio a criar galos de raça, saberia a hora certa de fazê-lo descer à rinha para brigar. Criador experiente, em cada ninhada escolhia o filhote que daria um lutador imbatível durante várias temporadas. Muita fama, algum dinheiro, sensação e certeza de que a rinha continuava firme, apesar da recente proibição. Na cidadezinha, um lugar sem outros atrativos, muitos gostavam das rinhas, nos finais de semana. Era a única diversão de peões, feirantes, pedreiros, vendeiros e até de algumas pessoas influentes, que ajudavam a manter a rinha funcionando.
Mestre Ambrósio confiava no futuro de Alvorada. Aquele galo, sim, o melhor de todos. Ia ser, com certeza. Na hora certa, quando estivesse preparado, com esporões em riste, entraria na arena para estraçalhar. Com apostas de favorito, transformaria em pinto qualquer um dos valentões calejados de pelejas e vitórias. Os freqüentadores da rinha acompanhavam o crescimento do galo, admiravam-se da dedicação do tratador e de sua fé na força do animal. Alvorada já era famoso na praça, antes mesmo de iniciar sua carreira de glórias. Era conhecido dos maiores apostadores, que já viviam na expectativa de assistir a sua grande estréia. Alguns arriscavam uma proposta pelo futuro campeão, ouvindo todos a mesma resposta firme do treinador:
— Este galo eu não vendo por dinheiro nenhum.
O galo já valia uma fortuna. Promessa certa de grande desempenho. Os apostadores queriam vê-lo em ação, mas mestre Ambrósio não tinha um qualquer de pressa. Já adulto, o animal estava forte e arisco, não encontrava páreo nas lutas de treinamento. Do alto de seu canto, agitava as asas com firmeza e harmonia, riscava o chão, marcando seu território, absoluto no terreiro. Galos experientes, com vitórias contadas, apanhavam, baixavam a crista diante das bicadas e dos esporões do futuro campeão. Mestre Ambrósio sorria satisfeito. Tinha certeza, já previa os lances das melhores brigas no meio da rinha. Alvorada faria estrago, invencível anos e anos. Ia ser, mas na hora certa. Por enquanto, esperassem.
Ambrósio sabia: era preciso ter calma e calcular o momento certo da estréia. Uma coisa era o terreiro, calmo e arejado. Outra coisa era a rinha, o círculo apertado, o barulho da platéia, a pressão dos olhares. Alvorada tinha força de brigão, mas ainda não estava pronto: faltava muito pouco.
O criador tinha uma afeição diferente por esta ave. Era o resultado de muitos cruzamentos de galos de raça com as fêmeas mais ariscas. Desde que deitara aqueles ovos de casca áspera, mais dura que o normal, tivera a intuição de que um deles daria um macho dos melhores já produzidos no seu terreiro. Acompanhou o choco passo a passo, cuidou para que a galinha não demorasse de voltar ao ninho, para que os ovos não esfriassem nem gorassem. As semanas se passavam; agia ali a natureza, com seu ciclo perfeito. O futuro galo de briga ia-se gestando.
Quando os ovos começaram a se romper, um deles exigiu bicadas mais fortes do filhote. Ele veio à luz, estreou um pio repetido, forte, meio esganiçado, desde já imponente. Era um bom sinal. Certeza de canto firme e asas poderosas. Por coincidência ou cuidado, Ambrósio estava por perto e ajudou a alargar a saída, afastando as cascas com a unha. Riu satisfeito ao receber a primeira bicada do filhote em seu dedo. Ali estava, talvez, o animal tão esperado.
Mestre Ambrósio tocava há tempos o negócio da criação de aves de raça. Mas o que o empolgava mesmo eram os galos de briga, paixão herdada do velho pai. Nas tardes de sábado, a rinha era como um estádio. Os aficionados chegavam de vários pontos da cidade, com seus animais de estimação super bem-tratados, transportados em tipóias típicas, bordadas por suas mulheres ou encomendadas às costureiras das vizinhanças. Eram interessantes essas peças, com suas abas, com alças semelhantes às de sacolas de tecido, um bojo onde se colocava o corpo do animal e com dois furos paralelos, por onde passavam as pernas que iam pensas, pelas ruas, ou em guidões de bicicletas.
A rinha fazia parte da tradição do lugar, funcionava ali há mais de cinqüenta anos. Um grupo de trabalhadores do interior de Sergipe ali se estabelecera, trazendo a novidade. O finado mestre Jorge, pai de Ambrósio, trouxera da terra natal, junto aos patrícios, os primeiros galos de raça e de briga, com a idéia e o sonho de tocar uma rinha. Começou com a cara e a coragem, devagar, com dedicação e vontade. O negócio foi prosperando aos poucos, com a criação e a venda de aves de raça. Mestre Jorge foi desenvolvendo seu tino de treinador, ganhou a experiência de preparar os frangotes para a luta. Os bichos, uma vez adultos, bem nutridos com milho e ração preparada em casa, tornavam-se pequenos gladiadores de pena.
A rinha era um templo: espaço de consagração e decepção, entre vitórias e derrotas. Ali começava ou acabava a fama de um galo de briga e de seu dono ou tratador. Tal como uma praça de touros, a rinha se desenhava enquanto palco de vida e morte. Os animais se enfrentavam com uma fúria silenciosa, olho no olho, crista a crista, a bicadas e golpes de esporões afiados. O sangue e as penas, num ruflar de asas ariscas, cristas dilaceradas, os pescoços arrepiados. As batalhas levavam horas e se transformavam em tema de discussões, dias e dias. Nas paredes, algumas fotos antigas, outras mais recentes, os assentos de madeira em volta, como uma pequena galeria de circo. Era uma arena trágica para os galos, o deleite dos amantes do estranho esporte.
O galo que perdia o combate cambaleava até cair. Moribundo, ia para os tratos com ervas e ungüentos que pudessem recuperá-lo aos poucos, se agüentasse. Curado, poderia mais tarde retornar à rinha para as grandes revanches. Porém, se morresse em combate, ia direto para a chamada panelada de sábado, degustada pelos participantes do esporte, regada a cerveja. Já os vencedores cresciam no conceito de todos. Seu dono amealhava considerações. As apostas subiam cada vez mais. O animal pegava valor no preço, como subia o valor de um canário que cantasse melhor após a primeira muda de penas.
O tempo glorioso de Mestre Jorge passou. O velho tratador não resistiu à decepção de ver o seu melhor galo, pelo qual chegara a enjeitar uma oferta alta em dinheiro vivo, perder uma luta e morrer na rinha. Trovão caiu feio, sangrado por um franguinho de primeira luta. Um golpe de sorte, um puro acaso. O velho Jorge entendeu o pressentimento que tivera naquele dia. Não tivera tempo de fazer a simpatia especial que dava mais força ao galo. Subestimara o inimigo, e Trovão morreu. O tratador, chateado demais, quebrou as regras: não deixou que levassem Trovão à panelada daquele sábado. Enterrou o galo no terreiro, como um ente querido, ao lado de seu saudoso cachorro perdigueiro. Depois disso, o velho Jorge perdeu a graça, ficou triste e desanimado. Não preparou nenhum outro galo de briga. Morreu com essa tristeza, sem jeito que se desse.
Mestre Ambrósio herdou o lugar do pai. Desde menino já acompanhava o velho, ajudava no trato diário das aves, aprendia a profissão por vivência e entusiasmo. E agora, experiente e afamado, sabia que cada galo tem a hora certa de subir ao ringue, encarar o inimigo de frente, sem cacarejar. Havia lá uns segredos que guardava para si mesmo, algo como uma superstição, que ele empregava. Quando preparava um galo para briga, tratava-o de maneira especial. Deixava-o a sós com as galinhas, dono do terreiro, por três dias. O galo ali se sentia senhor absoluto, sem rival que lhe disputasse as fêmeas. Horas antes da luta, o mestre recolhia a ave, prendia-a num abrigo ali mesmo no terreiro, e soltava outro macho em meio às galinhas. O lutador, privado de seus privilégios, e vendo o rival livre para desfrutar de suas fêmeas, ficava inquieto, riscava o chão com as esporas, cacarejava alto, inconformado. Dali saía para a rinha certamente com muita raiva acumulada. E descontava no adversário, com toda fúria, castigando-o a bicadas certeiras, com esporões vingativos. Depois da luta, o galo treinado por mestre Ambrósio regalava-se de volta ao convívio com suas fêmeas. Esse era o segredo a sete chaves que tornava mestre Ambrósio um treinador respeitado, já que vencer seus galos era um desafio quase impossível. E nisso também se apostava, quando e quem o venceria. A fama corria, vinham tratadores de outras cidades, e mais de longe, adversários cada vez mais qualificados. Galo de Ambrósio era invencível, até que um dia se provasse o contrário.
Muitos queriam ver Alvorada lutar. Alguns para admirar os lances de perícia adquirida nos treinos, outros com sede de ver o tratador derrotado.
— Está com medo de botar o galo na rinha, compadre?
A provocação irritava mestre Ambrósio. Por que tinham tanta vontade de derrotá-lo, se ele preparava galos para todos, se proporcionava espetáculos que valiam pelas apostas e pelas diversões? Ora, talvez por isso mesmo. Tudo fazia parte da mesma festa. A sede de pequenas crueldades permeava aquele esporte esquisito. Uma delas era o gosto de ver o favorito perder a briga, pela emoção da surpresa e do desafio. Degustar a carne de um favorito, inesperadamente derrotado, era talvez mais saboroso. Mestre Ambrósio se preocupava com isso. Mas estava certo de que não iam conseguir derrotá-lo. Alvorada estava pronto para brigar bonito, de igual para igual, com o melhor galo que aparecesse. Com a velha simpatia que pai lhe ensinara deixaria o galo enfezado e feroz, capaz de derrotar o qualquer que o desafiasse. Mas, e se não fosse um dia bom? E se Alvorada perdesse a briga, como acontecera com Trovão há tantos anos? Este era o receio do tratador, pelo amor que sentia pelo galo, um verdadeiro animal de estimação.
— Como é, vai ou não vai botar o galo na rinha? Ou está com medo?
— Vou, claro que vou. Vocês vão ver.
Espalharam o boato de que Alvorada subiria à rinha na próxima jornada de lutas. As apostas foram se multiplicando, nas rodas de conversas, nas praças, nas feiras. Era clima de festa esperada, sem volta. Mestre Ambrósio, de surpreso com a notícia, se viu enredado, que não podia recuar. Mas o treinador se perguntava se o galo estava mesmo pronto. E não havia jeito de adiar a estréia no sábado. As apostas cresciam, a notícia da luta se espalhava entre os interessados, corria até nas cidades vizinhas. Alvorada havia de subir à rinha sem falta, sob pena de provocar pilhérias, descrédito, desmoralização. E isso Ambrósio não podia tolerar. O galo estava bem treinado, forte, em forma. Certamente estava pronto para a briga. Mas isso garantia que iria vencer? No terreiro, o tratador observava a ave, que ciscava despreocupado, soberano. Ora, Alvorada venceria qualquer peleja.
No sábado a rinha estava apinhada, entre conversas e animação, na torcida pelos galos, nas brigas preliminares. Os homens se acomodavam como era possível, na casa lotada, com visitantes de fora, alguns estranhos, com seus galos a tiracolo, gente de outras bandas. Chegava a hora de se definir o adversário de Alvorada, pela escolha da platéia, ou pelo desafio da maior oferta em aposta. O desafiante firmava o valor da aposta que oferecia, como uma espécie de leilão da luta. Entre os desafiantes, dentre os da cidade, apenas dois fizeram um desafio, porém sem convicção de que pudessem vencer. Naquelas circunstâncias, seria honroso desafiar o galo de Mestre Ambrósio, ainda que para dali ver sua própria mascote ir direto para a panelada de sábado.
Na hora de firmar o desafio, surgiu, da última fila, a voz de um visitante. Era um homem moreno, estatura média, cabelos grisalhos e bigode ralo. Nunca fora visto antes por ali. Trazia um galo à mão, numa tipóia bem bordada, o bicho de olhos vivos, piscando sem parar, como se nervoso com o barulho do ambiente, de prontidão para a luta. Com voz pausada, o homem fez, em desafio, uma aposta dez vezes maior que qualquer outra oferta já cantada naquela rinha. E diante dos olhares surpresos e silenciosos dos presentes, o desafiante se apresentou.
— Sou Manuel Ramos, venho de Estância, cidade de seu pai. Sou filho de um velho compadre de Seu Jorge. Eu também trato de galos de briga; aprendi com meu pai . Eu soube de sua fama, resolvi vir para o desafio. Este aqui é o melhor galo que já tive na vida. Venho cuidando para que seja um vencedor. Estréia hoje para valer, igual a seu galo. Vamos ver quem é melhor.
Mestre Ambrósio coçou a nuca, acariciou a crista de Alvorada na tipóia vermelha, com frisos brancos. Pensou um pouco. Não havia mais jeito. O desafio estava posto de forma irrecusável. Era confrontar Alvorada contra o galo do visitante, que aparentava ser um treinador experiente, firme e confiante. Era um lance arriscado, mas não podia recusar.
— Muito prazer, seu Manuel. Aceito a aposta – disse, com certa preocupação, diante do vozerio geral.
Na hora da luta, cada tratador fazia os preparativos finais para o combate. Acertavam os esporões de metal nas patas dos bichos. Massageavam as asas e o pescoço, apertavam o bico abrindo e fechando algumas vezes, faziam gestos de avançar com a mão sobre a ave para apurar os seus reflexos. Diante da expectativa da platéia, inquieta, em conversas e comentários animados, era hora de se iniciar o combate. Como um ritual, os galos eram apresentados à platéia, seguros pelas asas pelos treinadores, em lados contrários da arena de luta. Assim alçados, ao sinal de uma contagem de um até três, soltavam-se as aves na arena mortal.
Os dois galos logo se encararam, arrepiando penas do pescoço e das asas, cabeças em riste, olhos adrenalinos. Reconheciam-se já em disputa pelo mesmo espaço, correram para o centro da rinha, em franco combate. Era a sorte lançada. Um balé de gestos agressivos, numa coreografia de volteios, saltos, golpes, espera, avanços e recuos, diante da gritaria animada dos torcedores em volta. Dois galos bem treinados, uma briga com lances espetaculares, como poucas vistas por ali.
Eu, narrador futuro, me espremia num canto, mais atrás, firme na ponta dos pés para ver os lances da briga. Sorrateiro, bem quieto, com medo de ser posto para fora, pois proibiam meninos naquele lugar. Mas o dia era de total atenção ao centro da rinha, ou, pelo simples, toleravam minha presença discreta. A cada bicada, a cor avermelhando-se nas cristas e pescoços dos galos, isso me deixava preso no misto de angústia, pena, expectativa, sem saber para que ave torcer, com medo de ver uma delas, cada qual tão bonita, cair derrotada na rinha, entregue ao abate, direto para a panela.
Em meio àquela gritaria, as aves guerreavam, em gestos acirrados, mostrando os efeitos de treinamentos requintados. Manuel, nervoso e arisco, gritava para seu galo desafiante: — Vamos, Veloz! – revelando o sugestivo nome do combatente. Mestre Ambrósio permanecia calado, concentrava-se em estudar, nos lances dos animais, qual era a tendência da luta. Embora calado, notava-se uma aflição no seu cenho enrugado. Ele sabia quando uma briga era das mais ferozes, daquelas que deixava um galo morto e outro bastante estragado. E essa era uma briga das mais perigosas. Ele avaliava o esforço das aves, sentia pelos saltos e golpes de Veloz que Manuel era um excelente treinador.
Ia a luta se desenrolando, de parte a parte, os bichos se atacavam, se revezam em golpes mais fortes. Veloz era melhor nos saltos, quando suspendia o esporão de forma perigosa para Alvorada. Ia acertando-o na coxa, sempre arriscando encaixar um golpe certeiro, talvez mortal. Esses golpes repetidos serviam para minar a resistência do inimigo pouco a pouco, deixando-o sem forças para saltar, para avançar. Com tempo, ia se cansando, ferido na base, acabava se entregando aos golpes fatais do adversário. Alvorada era mais forte, atacava com mais consistência e às vezes acuava Veloz num ponto da rinha, de um lado ou do outro. Havia equilíbrio, a luta mostrava-se empatada, sem vantagem clara para uma das aves.
Nas brigas de galo acertava-se, por acordo, um intervalo. Servia para descansar um pouco os lutadores, quando se julgava a luta empatada. O treinador podia ajustar as esporas dos bichos, limpar os pescoços sanguinolentos, massagear o peito, refrescar com um curioso banho. O treinador enchia a boca de água gelada, segurava a ave diante de si, na altura do seu rosto e borrifava, soprando o líquido da boca no corpo da ave, daí massageando o peito e as coxas para aliviar as dores e a tensão. Alguns acariciavam seus galos, até beijando-lhes o pescoço como incentivo à luta. Mas cada treinador só podia pedir um intervalo de cada vez, e se o outro concordasse. Só tinha direito a novo pedido, depois que o adversário usasse o mesmo direito.
A briga empolgava a platéia. Os galos não decepcionavam. Alvorada distribuía toda a sorte de golpes, conforme seus treinos mais requintados. Veloz, no entanto, era um galo surpreendente, forte, bem treinado, ou mesmo o que se diz: — um galo bom de briga! Um páreo duro para mestre Ambrósio. Os bichos seguiam em saltos, bicadas, negaceios de asas, olho no olho, procurando acertar um ao outro com os esporões em riste. Um balé de golpes e saltos, desenhando ziguezagues na arena, uma coreografia que deixava respingos de sangue pelas cabeceiras do ringue, no revestimento de um tecido rústico com enchimento acolchoado. A platéia admirava-se da disposição das aves na briga. Os mais empolgados faziam novas apostas. Alvorada e Veloz recebiam novas cotações. A torcida quase que dividida, uns até apostando num improvável empate, se ambos restassem vivos, mas esgotados, sem forças para lutar. Seria uma pena se um daqueles magníficos galos viesse a morrer, numa carreira de luta tão curta, mal iniciada. Podiam dar espetáculos contra inimigos mais fracos, fazendo o delírio dos torcedores.
Este narrador espichava o pescoço, procurava acompanhar a dança de golpes pelo tablado, prognosticando o fim das duas aves. Parecia-me que ambas estavam prestes a cair mortas, mutuamente vencidas, causando um silêncio de pena. Seria um castigo para todos aqueles homens.
A briga continuava e Veloz agora parecia estar em vantagem, acertando mais bicadas do que levava. Alvorada lutava, mas sempre recuando, com saltos cada vez mais baixos, sem alcançar vantagem contra o inimigo. Manuel, satisfeito com o desempenho de sua mascote, observava de esguelha, verificando o ânimo de mestre Ambrósio, se ele entregava os pontos. Mas a regra era clara, se o tratador entregasse os pontos, o galo perdedor saía desacreditado, jamais voltava a lutar na rinha. E Alvorada não merecia tamanha desonra, já que, em desvantagem, bastante machucado, lutava sem medo contra a fúria de Veloz. Mestre Ambrósio, observador experiente de quantas lutas, sentia que os golpes de seu galo atingiam o inimigo, mas não faziam um bom efeito. E viu que, pela posição que Veloz adotava, os esporões de Alvorada não o alcançavam em cheio. Restavam forças para reagir, mas os golpes não surtiam efeito. Assim, a sua derrota era uma questão de tempo, suas forças iam-se minando, o cansaço ia-lhe abatendo. Só um intervalo poderia reverter a situação, corrigindo-se o ângulo das esporas de metal. Era preciso fazer algo: uma parada, um borrifo de água gelada, uma massagem no peito, algo que salvasse Alvorada da derrota. Mas era nítido que Veloz estava vencendo e Manuel não consentiria em parar a luta. Confiante, enfrentava o olhar nervoso de mestre Ambrósio, diante da gritaria da platéia, que sentia a proximidade de uma definição na luta, uns apreensivos pelos valores apostados, outros comemorando a vitória iminente.
Os gritos se chocavam: Veloz! Veloz! Alvorada! Alvorada! O galo de mestre Ambrósio cambaleou pela primeira vez, junto à borda almofadada da rinha. Mas seguia lutando, aplicando os golpes de esporão, mas sem atingir o alvo em cheio. Nesse momento, o tratador sentiu perto o perigo de perder sua ave predileta. Pensou em fazer algo, pedir uma pausa, sair da luta, salvar Alvorada. Mas não tinha coragem de ceder, pois sentia que o galo queria lutar, espanando as asas, perdendo penas, o sangue escorrendo da crista. Eram lances fortes, bicadas firmes, esporeadas no ar, cortes nas coxas dos gladiadores de penas, ambos sangrando, bicos abertos de cansaço, penas espalhadas pelo chão. A platéia, quase em delírio, seguia gritando a cada lance mais espetacular, aos gritos: “Vai! Aí! Bica! Vai! Sangra! Mata!”. Era a expectativa de um lance fatal. Pelos movimentos da luta, muitos já esperavam ver Alvorada tombar vencido.
O galo de Ambrósio cambaleou mais de uma vez e, diante de uma bicada forte de Veloz, os torcedores já esperavam de pé pela queda fatal. Ali, quase solenemente, fez-se um silêncio longo. Uma espera, uma aflição, um galo bicava, o outro retrocedia, sem ânimo. Então mestre Ambrósio, meio que em desespero, quebrou sua tradição: de calado rompeu a pular e a gritar, com as palavras de incentivo que usava ao treinar o seu galo.
— Eia! Vai! Pega! Reage, Alvora! Enfrenta! Alvora!
Era só sua voz no recinto, nervosa, quase embargada, uma lágrima vinha brotando dos olhos cansados do velho tratador. Foram a voz e os apelos de Ambrósio? O que foi que deu ânimo novo ao galo? O que se sabe é que Alvorada soltou um cacarejo como um gemido de aflição, agitou as asas, riscou o chão e partiu instintivamente para cima do inimigo. Veloz, num lapso de surpresa, abaixou um pouco o corpo, recuando. Alvorada, por estar meio desequilibrado, acertou de lado, com o esporão em cheio no pescoço do inimigo. O golpe prostrou Veloz na rinha e este foi o último gesto de luta de Alvorada, que ambos tombaram lado a lado, com as cristas e os pescoços ensangüentados.
A luta chegava ao final, já se apurava o resultado. Ou se considerava o empate por esgotamento, ou o empate por morte dos dois galos. Já se examinavam as aves, daí logo constatando: Veloz, sem reação, não respirava: estava morto, vencido, nas mãos de seu dono desapontado. Veloz, conforme a praxe, seguia dali para se juntar aos demais perdedores da tarde, como iguaria da panelada. Alvorada, sem reação, ainda respirava: estava vivo, embora extenuado. Já recebia os cuidados nos braços de mestre Ambrósio, agora feliz, aliviado.
Esportivamente, Seu Manuel veio cumprimentar o mestre, e pagar a aposta devida. Prometia voltar para novas jornadas. E assim avaliou:
— Foi uma boa luta, em verdade um empate – disse, traindo no ritmo da fala uma certa tristeza. Dobrou a tipóia de Veloz, tentou enfiar num dos bolsos, mas não conseguiu. Então, olhou-a mais uma vez e atirou num canto, na minha direção. Eu peguei a tipóia do galo vencido, guardei como troféu que até hoje figura em meu velho baú de lembranças.
Seu Manuel se despediu, que já ia pegar a estrada, de volta a sua cidade. Ali, de ouvidos atentos, ouvi as suas observações, que deixaram Ambrósio em silêncio, preocupado.
— É uma pena. Seu galo é muito bom, mas, assim ferido, dessa noite não escapa.
Aquele sábado terminou em festa, com rodadas de cerveja, cantigas ao som de sanfonas e violões. A panelada já ia para o fogo e a expectativa era grande, pois diziam que galo bravo dava mais caldo, tinha mais sabor.
Mestre Ambrósio não ficou para comemorar. Seguiu para casa com o seu campeão na tipóia, muito ferido, num silêncio que só cedia a um ruído de cacarejo impossível, como gemidos de dor. Em casa, Ambrósio preparou beberagens que lhe enfiou bico adentro, passou ungüentos medicinais no corpo do bicho, tratou os ferimentos da crista, fez curativos no pescoço. Agasalhou Alvorada num ninho especial, com serragem e maravalhas finas, num canto bem arejado do terreiro. Ele se sentia culpado pelo sofrimento do animal, e orgulhoso pela vitória contra o pior inimigo que já vira na rinha. Manuel era um treinador dos melhores, com certeza. Ambrósio acariciou seu galo de estimação, abaixou-se e o beijou no bico. E, aproximando-se das aurículas do bicho, disse: “Boa noite, velho!”. Mas logo voltou, para ficar observando-o mais um pouco. “Você vai escapar dessa, velho”, ainda disse. E daí se recolheu, entre enternecido e confiante.
Na cama, sua mulher, Dona Dália, já ressonava, que dormia sempre mais cedo. Ela detestava brigas de galo. Já deitado, mestre Ambrósio sentiu o cansaço do dia, dos anos, da vida. Pela primeira vez sofrera de verdade com uma briga de galo. Sentira um aperto, quase uma dor no peito, com medo de perder. Não pela aposta em si, mas pela vida do galo. Não queria ver o bichinho cair morto diante de todos, virar tira-gosto de sábado, devorado com cerveja. Agora, Ambrósio sentia: Alvorada não era apenas um galo; era seu animal de estimação, mais que um amigo. E se emocionou, lembrando do trato diário com o pinto, o frango, o belo galo. Vinha-lhe a decisão firme. Nunca mais entregaria Alvorada à rinha. Deixaria essa vida de uma vez, como Dália vivia pedindo. Livre, Alvorada viveria solto pelo terreiro, a cobrir as galinhas de raça, como um verdadeiro reprodutor. Era o melhor galo de todos os tempos. Merecia ter uma linhagem, ninhada após ninhada. Os filhotes de Alvorada iriam povoar todos os terreiros, com aquele porte de campeão invencível, com aquele canto que encantava a manhã. Um canto que fazia os pássaros suspenderem a voz para ouvir.
Ambrósio estava sem sono, via a noite se arrastar. Como se sonhasse de olhos abertos, revia os piores lances da luta. Imaginava Alvorada morto, como seria sua enorme tristeza. Mas logo revia as melhores cenas, e o lance final da luta: o galo inimigo tombando, Alvorada reagindo, olhos semi-abertos, ferido mas vivo, vivo como sempre. Alvorada vivo!
A madrugada declinava, começava a clarear, com os avisos dos pássaros. Era a hora certa, como todo dia era, do canto de Alvorada. E, de repente, esquecido das feridas da ave, que também doeram, agudas, dentro dele, Ambrósio apurou bem os ouvidos. E de lá do terreiro, ouviu o canto de Alvorada. Era o belo canto de sempre, absoluto sinal de vida, entre os primeiros raios da manhã. Era um canto nítido, claro, imponente, superior: este canto, este que só mestre Ambrósio ouvia, e de agora para sempre ouviria, todo dia. Porque, nas redondezas, outros cantos longínquos assumiam o vago romper da manhã. No terreiro desolado, era só a alvorada que rompia e se elevava, e era alva como todos os dias. No entanto, estava envolta num silêncio de luto – que só se escutava, ali e além, o canto triste dos passarinhos.

O conto se encontra no livro O Canto de Alvorada, de Aleilton Fonseca, ed José Olympio, 2003.


sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aleilton comenta...

O escritor Aleilton Fonseca comenta o último livro publicado por Hilda Hilst: Estar Sendo, ter sido (São Paulo: Nanquin Editorial, 1997)

Autora de 41 livros, abrangendo dramaturgia, prosa e poesia, a escritora Hilda Hilst sempre desafiou a crítica, deixando-a perplexa diante de sua escrita ousada, de técnica apurada, com extremo toque pessoal e inventividade. Dona de um texto multifacetado, híbrido, desabusado, sem rédeas, Hilst é uma autora difícil de situar devido à sua originalidade inquietante e incômoda. Daí talvez o relativo silêncio que perdura em torno de sua volumosa obra, pois os críticos em geral não gostam de se arriscar. Este fato a entristecia muito, ao ponto de a escritora haver declarado, em entrevista à revista Caros Amigos, em 1998, o seu estado de descrença, sua desesperança, sua desistência de tudo que dissesse respeito à vida e badalações literárias. Foi, talvez, mais uma face da irreverência que acompanhou sua carreira e que aparece de forma nítida em suas obras.

As qualidades de Hilda Hilst foram destacadas por críticos como Anatol Rosenfeld que, no prefácio do livro Fluxo-Floema, de 1970, garante que: “É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar três gêneros fundamentais de literatura - a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa - alcançando resultados notáveis nos três campos.
A este pequeno grupo pertence Hilda Hilst”.
Senhora de uma técnica narrativa definida, Hilda Hilst trabalhava a ruptura e a mistura dos gêneros, evoluindo para um texto múltiplo, em que poesia, narrativa e drama convergem e se mesclam numa prosa dinâmica e vigorosa. O seu último romance publicado, Estar sendo, ter sido (São Paulo: Nanquin, 1997), é exemplar das qualidades da ficcionista e estilista, a quem não faltaram a audácia, o desvario, o paroxismo, o exercício da linguagem no limite. Nele se apuram as características há muito já apontadas por Rosenfeld: “uma corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, impudico, real e supra-real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico, as narrativas de Hilda Hilst”.
Estar sendo, ter sido constitui uma escrita em processo, na qual um personagem escritor está a escrever um livro baseado em suas memórias e seus desvarios. Trata-se de uma espécie de memorial das aventuras sexuais de um homem decadente, para quem rememorar - mola de sua escrita - é o último consolo e balanço final de uma existência acidentada. Por isso mesmo, essa escrita tem algo de confissão: em que atos e pensamentos afloram à linguagem sem peias, sem necessidade de escamoteação, pois que a trajetória do narrador-personagem está cumprida e nada mais mudará o seu rumo.

DESAFIO AO LEITOR – A história narrada requer um interlocutor que já tenha assimilado o estilo hilsteano e seus temas ou, então, que alie curiosidade à inteligência no ato de ler. O texto é um desafio ao leitor, pois a ele é exigida a capacidade de despir-se da hipocrisia, dos valores convencionais e dos comportamentos de fachada e admita que o ser humano é ao um só tempo contraditoriamente sublime e grotesco, moralista e desregrado, puritano e lúbrico, como condição íntima de seu ser. A autora joga com esses extremos, atualizando um no texto e deixando o contraponto render nas entrelinhas.
O escritor, Vittorio, personagem principal do romance, e narrador de si mesmo, representa o papel do antiquado macho típico da cultura latino-americana. O seu ideal de mulher é o da submissa, de cama e mesa, sempre pronta a satisfazê-lo. Vittorio elide de sua vida a imagem da esposa (que o abandonou, fugindo com outro homem), ou seja, a mulher anjo/santa, figura antípoda dessa mesma lógica, para dar relevo à sua simétrica: a mulher-sexo, a quem denomina de “vaca”.
Sempre contracenando com o primo Matias, com o filho Júnior, com mulheres que passaram por sua vida, e, também, consigo mesmo, sua escrita amalgama, através dos diálogos inseridos no mesmo fluxo narrativo, as diversas perspectivas postas em cena. Seus pontos de vista são compulsados numa espécie de exame de consciência, já que lhe perpassa sempre a idéia da morte, aliás encarada de forma irreverente. Segundo afirma: “a foiçuda deve estar por perto a me rondar”(p. 21).
Vittorio é um personagem à feição do teatro, e o leitor sente a presença da autora na coxia, dirigindo cada um de seus gestos. Idoso e decadente, próximo da morte, como que para tornar seus últimos dias menos amargos, revisita o seu passado e revela a sua condição de homem sexual e amoralmente ativo, ao narrar suas experiências através de uma linguagem desabusada, utilizando o vocabulário sem escrúpulos, com as palavras mais chulas. A imagem que traduz das mulheres que passaram por suas mãos é sempre a de objetos usados. Os atos praticados com elas nunca traduzem uma idéia de desejo compartilhado ou de afetividade, mas de simples uso e subordinação. Com isso, ele coloca a mulher no campo semântico do despudor, do desfrute, da amoralidade, tratando-as com epítetos e expressões desqualificantes.
Se o leitor desavisado não entender as regras do jogo proposto, poderá se sentir incomodado, achar a linguagem pesada e até gratuita. O que é necessário é despir as máscaras e se permitir uma leitura ao largo dos preconceitos, sobretudo aqueles mais sutis, que se travestem de “bom gosto”. De um lado, não deve causar espanto a ousadia de uma escritora, ou seja, uma mulher, empunhar a linguagem literária licenciosa, sem pedir licença nem desculpas, e, com desenvoltura, tirá-la da condição privativa dos escritores, ou seja, dos homens, para a exercitar com arte e criatividade peculiares, acrescentando a essa vertente literária - aliás clássica - uma perspectiva feminina.
A autora tira proveito da situação em que colocou o narrador, personagem masculino com uma visão peculiar -mas ainda assim nada incomum - acerca da vida, do mundo, das relações pessoais, principalmente das mulheres, com as quais saciou ao longo de sua vida, a sua obsessiva carência erótica das maneiras as mais bizarras. Hilda Hilst maneja habilmente o discurso autocentrado do narrador, dando-lhe espaço - ou corda -para se revelar por inteiro. Ele relata suas aventuras e desvela o seu caráter, avalia as situações vividas, expõe suas próprias fraquezas e manias, chegando às raias do ridículo e do risível. Vitório tem uma visão machista da vida: constitui um ícone de uma tradição superada e, como tal, é impiedosamente denunciado e posto em confissão sob a pena criativa e implacável da autora.

PERSONAGEM EMBLEMÁTICA - A trajetória de Vittorio representa uma faceta do homem - a sexualidade - vista na moldura do machismo assumido. A autora torna o personagem em emblema dessa questão, atualizando no plano ficcional as potencialidades sofreadas pelos códigos sociais de conduta que, por isso mesmo, afloram num campo particular de relações problemáticas, traduzidas pela dominação, pela culpa, pela visão da mulher como objeto.
A romancista “solta” o personagem na arena narrativa e lhe dá plena voz , inclusive como escritor de sua própria história, para que confesse a sua ideologia machista, mostrando o vazio afetivo a que chega ao final de sua vida. Para ele, a relação com a mulher significou apenas a satisfação de seus impulsos. De seus atos não resultaram trocas afetivas que pudessem lastrear as suas relações e enriquecer suas memórias. Nenhum sentimento para além da posse é acionado no seu discurso, suas relações são fortuitas e desprovidas de sentido amoroso. Vittorio representa uma geração de homens, em geral ciosos de sua suposta superioridade, de sua primazia de macho, para quem a mulher quase sempre aparece como objeto. Trata-se de um tipo hoje anacrônico, em crise, em lugar do qual se vem construindo um outro homem, cada vez mais consciente do novo modus vivendi que a mulher moderna requer e exige. A morte iminente de Vittorio é simbólica: sinaliza a crise e a morte do velho homem, machista, pater familias, que já não tem lugar no novo contexto das relações entre os sexos.
Em face da complexidade e da riqueza do tema, nesse romance a escrita flui automática, sem pudores, sem censura, criando contextos em que o baixo calão se torna funcional e perfeitamente integrado à cadeia narrativa. Para desnudar o personagem em vários ângulos, o texto também tira proveito do estilhaçamento dos gêneros, transitando entre paródia, farsa, poesia e drama, sem perder sua consistência. Isso é fundamental para evitar maniqueísmos, pois considera e dá vazão às diversas nuanças de Vittorio, não apenas um machista, mas também um escritor, com senso estético, com inquietações e indagações existenciais, em busca de uma noção de Deus, que procura consubstanciar na sua visão dessacralizadora e amoral do mundo.
Por outro lado, os efeitos do texto, ainda que possam chocar alguns leitores em determinadas passagens, é sempre equilibrado por uma gama de relações intertextuais, em que são citados autores como Ovídio, Petrarca, Shaskespeare, Antônio Vieira, Joyce, Oscar Wilde, Jorge de Lima. Essa intertextualização constitui um caudal de saberes que adere ao contexto narrativo de maneira convincente. As palavras contextualizam-se nas situações narradas e suas virtualidades sonoras e semânticas configuram um todo harmônico que seduz o leitor mais exigente, porque dão equilíbrio ao texto no difícil trânsito entre o chulo e o erudito. Sem fazer concessão ao gosto médio, a narrativa de Hilda Hilst desnuda a imagem envelhecida do homem “predador” e, com isso, ironiza a decadência da cultura machista.

Disponível em: http://www.tanto.com.br/aleiltonfonseca-hh.htm Acessado em: 09/04/2010

“ Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia –
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- é lua nova –
e revestida de luz te volto a ver.”
Hilda Hilst

ZÉ PRETO

Aleilton Fonseca

Ninguém dava atenção a Zé Preto, mas ele e seu cachorro insistiam em me reconquistar com seus olhos penitentes. Tudo, no entanto, havia mudado. Eu já não dispunha de tempo livre como antes. Adulto, agora eu vivia apressado, cheio de tarefas no escritório. Mas insistiam, como se eu pudesse interceder por eles, em busca de um lugar em que ainda coubessem no mundo.

Sempre juntos, o velho manso, com seus passos miúdos, e o triste escudeiro, de olhos não ferozes e cauda intranquila, que nem se atrevia a latir. Guardavam-se de maiores maltratos, de maus olhos, certas pedradas e quais descasos. Pior: agora estavam ameaçados de despejo. Queriam pôr Zé Preto no hospício e o cachorro porta afora. Entretanto, como separar tais criaturas que só sabiam existir um para o outro?

A vizinhança, totalmente renovada, agora os desconhecia. Queriam varrer os pobres da tapera triste, em plenas formas arruinadas por chuva, sol e janeiros. Eles eram considerados uma mancha feia naquela rua que cada vez mais se tornava chique. Os novos moradores os rejeitavam, pois que eram, muitos deles, bem empregados, alguns cheios de empáfia aos ventos. De fato, não era mais uma rua de gente pobre, como durante tantos anos, desde que Zé Preto se amoitara naquele canto.

Ele era de outras datas, na época das velhas vizinhanças. Desde sempre bem aceito e tratado, davam-lhe de comer, beber, vestir e remediar. Até sorrisos lhe sobravam. Minha mãe, enquanto viveu, esteve atenta a esses cuidados. Para ela, zelosa dos vizinhos mais humildes, Zé Preto era uma devoção diária. Como fornecia marmita, mandava-me levar o almoço e a janta dele. Eu entregava o embrulho, com dois pratos fechados, um contra o outro, enrodilhados num pano de cozinha.

Zé Preto também recebia atenção de outros vizinhos. Tanto que não precisei continuar os cuidados; ele se arranjava com outras pessoas. Daí que fui esquecendo dos velhos tratos e, raramente, o via. E eram cada vez mais remotas suas aparições na rua. O cachorro certamente era outro, mas parecia o de sempre. Se me avistavam, insistiam em chamar minha atenção. Eu, no entanto, desviava deles os olhos e os passos. Cuidava de minha vida.

Esse homem, eis um ser discreto. Naquele tempo, ninguém triscava num sequer detalhe de sua história. Era sempre assim, de seu jeito, sem nenhum motivo que se comentasse. Provado manso, era circunspecto, por vez risonho, sobretudo divertido com as crianças. Ele gostava de brincar. Fazia carrinhos de madeira, toscos, desengonçados, que arrastava pela rua, barulhando. Ora engendrava algo como se parecesse um avião, um catavento de lata, que, se não voava, ao menos divertia ao rodopiar pelo terreiro.

Certas vezes, Zé Preto saía correndo pelas ruas, nas mãos uma tampa de lata, qual fosse um volante; buzinava e fazia ruído de motor com a boca. Era o perfeito homem acriançado, bom de se gostar, sem travos nem receios. Os meninos íamos colher balas para guerra nas mamoneiras do seu quintal, sem que isso somasse riscos ao zelo das mães. Zé Preto era ajuizado, de confiança, incapaz de malfeitos ou abusos. Todos gostavam dele.

Dia a dia, o tempo salta e as pedras rolam. Os meninos da vizinhança crescemos, os velhos morreram. Muitos se mudaram, venderam as posses, foram-se embora. A cidade crescendo sempre, a rua foi ganhando novos donos, outras feições, pontos de comércio, asfalto, carros e transeuntes; uma gente estranha e apressada, em busca de outros tratos de viver e morar. Diante dos novos jeitos da rua, Zé Preto e sua casa foram-se tornando estranhos, exóticos, — ruínas indesejáveis.

Um boato ganhou as esquinas, correu a rua de ponta a ponta. Não achavam certo semelhante pessoa enfear a paisagem, ali morador, no horrível casebre em ruínas, cercado de mato. Aquilo desvalorizava a rua e as casas vizinhas. Era algo ruim de se ver, conviver e aceitar. Diante do caso, voltei a me preocupar com o velho amigo. Dei-me conta de que eu era o único remanescente dos jogos de gude, das brincadeiras de bola, picula e empinações de arraia, agora impossíveis na rua movimentada. Daqueles tempos, só eu e Zé Preto restávamos.

Entretanto, mantive-me discreto, ao largo dos comentários. Os mentores da campanha vieram me pedir apoio para desalojar o homem dali. Ora, eu não podia compartilhar uma ação contra Zé Preto. Discordei, defendi seu direito de permanecer no lugar. Eu trazia do tempo de infância uma atenção silenciosa pelo velho, e agora indesejado, morador da rua.

O fato me avivou a memória. De vagos registros, em calças curtas, me lembrava de haver brincado em seu terreiro, em seu quintal aberto. E mais: eu me via em seu colo, minha mãe perto, mas nem aflita, pedindo, com muita calma, que ele me pusesse no chão. Zé Preto, então jovem, ria de me haver em seus braços. Um dia me levou para sua casa, para desespero discreto de minha mãe. Eu tinha uma vaga ideia de seu estranho lar por dentro, onde havia latas dependuradas, pequenas caixas de papelão, trastes espalhados — que me pareciam uma arte de fazer ruídos. Brinquei com aquelas coisas; bati lata com lata, juntei pedra com pedra, armei pilhas de gravetos, combinei cacos de vidro. Ele, muito atento, quase sempre calado, só me olhando e rindo. No seu tom encabulado, me dizia baixinho: “Oh, Zefizim”.

Minha mãe tinha muito cuidado. Preenchia os tratos comigo, limitava meus vôos, vigiava-me os passos, quedas, cismas e vontades. Era rígida no trato, e firme nos exemplos. Mas aceitava que eu errasse, desde que soubesse o quanto, como então me explicava. Eu crescia pelos terreiros, de rua a rua. Zé Preto de vez em quando me tomava pelo braço, me dava os estranhos brinquedos de lata e de madeira, sem nenhum sentido de uso que eu imaginasse. Eram só mesmo de se pegar ou fazer barulhos. Minha mãe procurava evitar, escondia-me dele, dizia que eu estava na escola. Mas o vizinho acercava-se de nossa janela e me chamava pelo apelido inventado:

— Oh, Zefizim, vecê vem cá, vem brincar com eu, vecê vem...

O bom amigo, de voz e passos mansos, flagrava às vezes a inverdade. Seus olhos brilhavam, quando me descobriam. E eu, sem saber que minha mãe reprovava nossos encontros, até gostava de entrar naquelas ruínas. Eu tomava bons borrifos de chuva, boa aragem de vento, naquela ex-casa, quase mesmo a céu aberto.

O tempo agora era outro. Mas como eu poderia ser contra Zé Preto? Jamais. Ignorei o problema, embora notasse que as pessoas estavam determinadas a expulsá-los dali. Só espreitavam um pretexto, um deslize assim que fosse. Insinuavam que eram perigosos, que ameaçavam os passantes. Mentiras! O velho e o cachorro, amoitados no casebre, vigiavam a rua de longe, adivinhando os perigos através das frinchas das paredes arruinadas.

Um dia aconteceu o pior. Eu estava no escritório quando recebi um telefonema revelando o inexato. Eu fosse até lá urgente. Davam conta de que Zé Preto havia sequestrado o filho da nova vizinha, levando-o para sua casa. As pessoas, instigadas contra ele, posicionavam-se em atitudes agressivas. Chamaram a polícia e reclamaram providências para, segundo diziam, salvar a criança das garras do doido perigoso.

Eu corri de imediato para acudir Zé Preto. Era urgente livrá-lo daquele apuro. Eu sabia que ele, certamente revivendo estórias, queria apenas agradar o menino. Talvez sentisse saudade de brincar comigo.

Infelizmente, cheguei na hora máxima do tumulto. E não consegui evitar a tragédia. Alguém havia visto o cano de uma arma apontada para a rua, desde as ruínas. Houve correria, gritavam que Zé Preto ia atirar. Na confusão, ouviram-se dois tiros. E depois só silêncio e sobressalto. Imediatamente, corri para o casebre e vi a mesma cena que eu, em criança, também protagonizara. O menino, de uns cinco anos, entretido com os estranhos objetos, empunhava a velha arma de brinquedo. Ele havia apontado a arma para a rua pela grande frincha da parede.

De imediato, vi Zé Preto caído, seus frangalhos de roupa tingiam-se de vermelho. Na aflição, gritei que o tinham matado. Mas ele ainda estava morrendo. Corri para tentar ajudá-lo, em vão. Ele se apagava rápido. Ainda olhou piedoso para mim e para a criança, e murmurou sua velha frase, quase inaudível: “Oh, Zefizim”. E calou, sem expressão nos olhos úmidos. Ajoelhei-me sobre ele, angustiado, e fechei seu olhar vazio. Zé Preto, morto. Eu fiquei perplexo, uma vida inteira ia repassando em minha memória. De pé, eu olhava o seu corpo, custava-me acreditar. O cachorro, num canto, acuado, rosnava baixinho. Apanhei o menino, trouxe-o para fora das ruínas. A mãe, em prantos, arrebatou o filho de meus braços e o apertou ao peito. A multidão em volta estava em silêncio, depois irrompeu, num vozerio abafado, com diversos comentários.

Zé Preto estava morto. A pior coisa estava feita, por dúvidas de um ato suspeitoso ou premeditado. Voltei às ruínas, e vi o velho cachorro junto ao dono. Lá fora, os curiosos se dispersavam. Eu me sentia num viés, entre uma grande perda e uma enorme culpa. Eu me atrasara por longos anos ou por um eterno minuto?

Zé Preto foi declarado morto em tumulto, num crime de autoria desconhecida. Fui ao centro, falei com autoridades e nada obtive de certo. Apenas aceleraram os papéis e dispensaram outras praxes. Um ser humano, morto de modo tão mesquinho, e constou que era apenas um doente mental sem dono. Eu, único vizinho do tempo em que Zé Preto era bem-quisto, sentia agora o dever de cuidar dele como se fosse gente minha. Tomei as providências normais para o seu enterro.

Entretanto, não fiquei sozinho nessa missão. Um homem grisalho, de jeito muito humilde, apareceu para cuidar do morto. Chegou trazendo um caixão simples numa carroça. Eu o acompanhei. Ele parou, me olhou fundo, apertou os olhos e indagou:

Eu conheço o senhor de algum lugar?

Creio que não — respondi convicto.

Ao ver o morto, o homem murmurou:

Coitado de meu irmão.

Surpreso, examinei bem os seus traços. De fato, ele se parecia com Ze Preto, só que normal, sem aquele ar vago e manso, embora fosse um tipo circunspecto, sem dar trela a conversas compridas. Com minha ajuda, limpou o corpo do irmão, vestiu-lhe um traje que trouxera num embrulho. Daí fez a barba do morto, aparou seus cabelos, dando-lhe uma feição nova que me pareceu estranhamente familiar.

Em silêncio, preparamos o corpo e o ajeitamos no caixão. Ficamos ali, de guarda, durante algumas horas, num estranho e solitário velório. Sem uma palavra. De vez em quando fitava meu rosto, olhava demoradamente para o morto, franzia o cenho, de jeito indagativo. E rezava em silêncio. Eu apenas recordava as boas passagens da vida.

No fim da tarde, colocamos o esquife na carroça e nos dirigimos ao cemitério. Tantas vezes eu levara alimento a Zé Preto. Agora uma prece lhe bastava. No fim do ato, quando acabamos de juntar terra à cova, o homem estendeu-me a mão. Ele me agradecia e, por fim, me indagava:

— O senhor sabe o que é feito do filho de José de Arimateia de Jesus?

— De quem? — eu estranhei.

Ele repetiu seu olhar para mim, firme, apontando para a sepultura com o queixo:

De meu irmão.

E ele teve um filho? — eu me espantava.

— Sim... Quando moço, ele teve um filho com uma vizinha.

Engoli em seco; balancei a cabeça negativamente. Ali mesmo nos despedimos. E eu prossegui minha vida, sempre calado, até que as palavras começaram a ressurgir com sutis insinuações. Aquelas ruínas me chamam, e eu preciso juntar pedra com pedra, arrumar os gravetos, combinar os cacos de vidro.

In: Teresa nº 3. Revista da USP. São Paulo, 2004.



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