sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aleilton comenta...

O escritor Aleilton Fonseca comenta o último livro publicado por Hilda Hilst: Estar Sendo, ter sido (São Paulo: Nanquin Editorial, 1997)

Autora de 41 livros, abrangendo dramaturgia, prosa e poesia, a escritora Hilda Hilst sempre desafiou a crítica, deixando-a perplexa diante de sua escrita ousada, de técnica apurada, com extremo toque pessoal e inventividade. Dona de um texto multifacetado, híbrido, desabusado, sem rédeas, Hilst é uma autora difícil de situar devido à sua originalidade inquietante e incômoda. Daí talvez o relativo silêncio que perdura em torno de sua volumosa obra, pois os críticos em geral não gostam de se arriscar. Este fato a entristecia muito, ao ponto de a escritora haver declarado, em entrevista à revista Caros Amigos, em 1998, o seu estado de descrença, sua desesperança, sua desistência de tudo que dissesse respeito à vida e badalações literárias. Foi, talvez, mais uma face da irreverência que acompanhou sua carreira e que aparece de forma nítida em suas obras.

As qualidades de Hilda Hilst foram destacadas por críticos como Anatol Rosenfeld que, no prefácio do livro Fluxo-Floema, de 1970, garante que: “É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de especializações, que experimentam cultivar três gêneros fundamentais de literatura - a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa - alcançando resultados notáveis nos três campos.
A este pequeno grupo pertence Hilda Hilst”.
Senhora de uma técnica narrativa definida, Hilda Hilst trabalhava a ruptura e a mistura dos gêneros, evoluindo para um texto múltiplo, em que poesia, narrativa e drama convergem e se mesclam numa prosa dinâmica e vigorosa. O seu último romance publicado, Estar sendo, ter sido (São Paulo: Nanquin, 1997), é exemplar das qualidades da ficcionista e estilista, a quem não faltaram a audácia, o desvario, o paroxismo, o exercício da linguagem no limite. Nele se apuram as características há muito já apontadas por Rosenfeld: “uma corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, impudico, real e supra-real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico, as narrativas de Hilda Hilst”.
Estar sendo, ter sido constitui uma escrita em processo, na qual um personagem escritor está a escrever um livro baseado em suas memórias e seus desvarios. Trata-se de uma espécie de memorial das aventuras sexuais de um homem decadente, para quem rememorar - mola de sua escrita - é o último consolo e balanço final de uma existência acidentada. Por isso mesmo, essa escrita tem algo de confissão: em que atos e pensamentos afloram à linguagem sem peias, sem necessidade de escamoteação, pois que a trajetória do narrador-personagem está cumprida e nada mais mudará o seu rumo.

DESAFIO AO LEITOR – A história narrada requer um interlocutor que já tenha assimilado o estilo hilsteano e seus temas ou, então, que alie curiosidade à inteligência no ato de ler. O texto é um desafio ao leitor, pois a ele é exigida a capacidade de despir-se da hipocrisia, dos valores convencionais e dos comportamentos de fachada e admita que o ser humano é ao um só tempo contraditoriamente sublime e grotesco, moralista e desregrado, puritano e lúbrico, como condição íntima de seu ser. A autora joga com esses extremos, atualizando um no texto e deixando o contraponto render nas entrelinhas.
O escritor, Vittorio, personagem principal do romance, e narrador de si mesmo, representa o papel do antiquado macho típico da cultura latino-americana. O seu ideal de mulher é o da submissa, de cama e mesa, sempre pronta a satisfazê-lo. Vittorio elide de sua vida a imagem da esposa (que o abandonou, fugindo com outro homem), ou seja, a mulher anjo/santa, figura antípoda dessa mesma lógica, para dar relevo à sua simétrica: a mulher-sexo, a quem denomina de “vaca”.
Sempre contracenando com o primo Matias, com o filho Júnior, com mulheres que passaram por sua vida, e, também, consigo mesmo, sua escrita amalgama, através dos diálogos inseridos no mesmo fluxo narrativo, as diversas perspectivas postas em cena. Seus pontos de vista são compulsados numa espécie de exame de consciência, já que lhe perpassa sempre a idéia da morte, aliás encarada de forma irreverente. Segundo afirma: “a foiçuda deve estar por perto a me rondar”(p. 21).
Vittorio é um personagem à feição do teatro, e o leitor sente a presença da autora na coxia, dirigindo cada um de seus gestos. Idoso e decadente, próximo da morte, como que para tornar seus últimos dias menos amargos, revisita o seu passado e revela a sua condição de homem sexual e amoralmente ativo, ao narrar suas experiências através de uma linguagem desabusada, utilizando o vocabulário sem escrúpulos, com as palavras mais chulas. A imagem que traduz das mulheres que passaram por suas mãos é sempre a de objetos usados. Os atos praticados com elas nunca traduzem uma idéia de desejo compartilhado ou de afetividade, mas de simples uso e subordinação. Com isso, ele coloca a mulher no campo semântico do despudor, do desfrute, da amoralidade, tratando-as com epítetos e expressões desqualificantes.
Se o leitor desavisado não entender as regras do jogo proposto, poderá se sentir incomodado, achar a linguagem pesada e até gratuita. O que é necessário é despir as máscaras e se permitir uma leitura ao largo dos preconceitos, sobretudo aqueles mais sutis, que se travestem de “bom gosto”. De um lado, não deve causar espanto a ousadia de uma escritora, ou seja, uma mulher, empunhar a linguagem literária licenciosa, sem pedir licença nem desculpas, e, com desenvoltura, tirá-la da condição privativa dos escritores, ou seja, dos homens, para a exercitar com arte e criatividade peculiares, acrescentando a essa vertente literária - aliás clássica - uma perspectiva feminina.
A autora tira proveito da situação em que colocou o narrador, personagem masculino com uma visão peculiar -mas ainda assim nada incomum - acerca da vida, do mundo, das relações pessoais, principalmente das mulheres, com as quais saciou ao longo de sua vida, a sua obsessiva carência erótica das maneiras as mais bizarras. Hilda Hilst maneja habilmente o discurso autocentrado do narrador, dando-lhe espaço - ou corda -para se revelar por inteiro. Ele relata suas aventuras e desvela o seu caráter, avalia as situações vividas, expõe suas próprias fraquezas e manias, chegando às raias do ridículo e do risível. Vitório tem uma visão machista da vida: constitui um ícone de uma tradição superada e, como tal, é impiedosamente denunciado e posto em confissão sob a pena criativa e implacável da autora.

PERSONAGEM EMBLEMÁTICA - A trajetória de Vittorio representa uma faceta do homem - a sexualidade - vista na moldura do machismo assumido. A autora torna o personagem em emblema dessa questão, atualizando no plano ficcional as potencialidades sofreadas pelos códigos sociais de conduta que, por isso mesmo, afloram num campo particular de relações problemáticas, traduzidas pela dominação, pela culpa, pela visão da mulher como objeto.
A romancista “solta” o personagem na arena narrativa e lhe dá plena voz , inclusive como escritor de sua própria história, para que confesse a sua ideologia machista, mostrando o vazio afetivo a que chega ao final de sua vida. Para ele, a relação com a mulher significou apenas a satisfação de seus impulsos. De seus atos não resultaram trocas afetivas que pudessem lastrear as suas relações e enriquecer suas memórias. Nenhum sentimento para além da posse é acionado no seu discurso, suas relações são fortuitas e desprovidas de sentido amoroso. Vittorio representa uma geração de homens, em geral ciosos de sua suposta superioridade, de sua primazia de macho, para quem a mulher quase sempre aparece como objeto. Trata-se de um tipo hoje anacrônico, em crise, em lugar do qual se vem construindo um outro homem, cada vez mais consciente do novo modus vivendi que a mulher moderna requer e exige. A morte iminente de Vittorio é simbólica: sinaliza a crise e a morte do velho homem, machista, pater familias, que já não tem lugar no novo contexto das relações entre os sexos.
Em face da complexidade e da riqueza do tema, nesse romance a escrita flui automática, sem pudores, sem censura, criando contextos em que o baixo calão se torna funcional e perfeitamente integrado à cadeia narrativa. Para desnudar o personagem em vários ângulos, o texto também tira proveito do estilhaçamento dos gêneros, transitando entre paródia, farsa, poesia e drama, sem perder sua consistência. Isso é fundamental para evitar maniqueísmos, pois considera e dá vazão às diversas nuanças de Vittorio, não apenas um machista, mas também um escritor, com senso estético, com inquietações e indagações existenciais, em busca de uma noção de Deus, que procura consubstanciar na sua visão dessacralizadora e amoral do mundo.
Por outro lado, os efeitos do texto, ainda que possam chocar alguns leitores em determinadas passagens, é sempre equilibrado por uma gama de relações intertextuais, em que são citados autores como Ovídio, Petrarca, Shaskespeare, Antônio Vieira, Joyce, Oscar Wilde, Jorge de Lima. Essa intertextualização constitui um caudal de saberes que adere ao contexto narrativo de maneira convincente. As palavras contextualizam-se nas situações narradas e suas virtualidades sonoras e semânticas configuram um todo harmônico que seduz o leitor mais exigente, porque dão equilíbrio ao texto no difícil trânsito entre o chulo e o erudito. Sem fazer concessão ao gosto médio, a narrativa de Hilda Hilst desnuda a imagem envelhecida do homem “predador” e, com isso, ironiza a decadência da cultura machista.

Disponível em: http://www.tanto.com.br/aleiltonfonseca-hh.htm Acessado em: 09/04/2010

“ Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia –
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- é lua nova –
e revestida de luz te volto a ver.”
Hilda Hilst

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