Por:Angélica Milano Siqueira Ramos
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Este artigo visa fazer uma releitura do conto de Aleilton Fonseca, Jaú dos bois, e ao mesmo tempo fazer análise, tecer comentários acerca de um tema que a princípio pode passar despercebido ao leitor, que em primeira instância só percebe o jogo do poder que resulta no sofrimento do personagem principal Jaú. Entretanto, após uma releitura mais aprofundada, notamos questões relacionadas a gênero que iremos abordar neste trabalho.
Segundo Coutinho:
A literatura, como toda arte é uma transfiguração do real, é a realidade recriada, através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são gênero, e com os quais ela toma corpo e nova realidade.
Gostaria de reproduzir inicialmente um trecho de uma das obras mais sensíveis e comoventes da literatura brasileira, o relato sobre Miguilim personagem da obra "Campo Geral" de Guimarães Rosa. Quero assim pontuar sobre a importância da leitura de obras literárias que realmente podem literalmente "abrir" nossos olhos, e nossa mente.
Vivia, lá no longe do sertão mineiro, um menino meio calado, muito triste que buscava entender as coisas que não entendia: da sua cidade Mutum , da sua casa, da ausência – do pai e do irmão querido, Dito. Chamava-se Miguilim, e arrastava a mesmice da tristeza de seus oito anos. Até que um dia vêm vindo na estrada dois homens a cavalo. Um todo de branco, perguntava o nome do menino.
- Miguilim. Eu sou o seu irmão Dito.
- E o Dito é dono dessas terras?
- Não. O Dito está em glória – Miguilim respondeu os olhos apertados.
O doutor quis falar com o pessoal da casa. Havia gente lá? Havia, sim: a mãe, o tio Terez... já na sala, saboreando o café, o estranho torna a reparar em Miguilim.
- Esse nosso rapazinho tem vista curta – o doutor coloca seus óculos no rosto do menino.
Miguilim nem podia acreditar! Pela primeira vez via as coisas direitinho! "Tudo era uma claridade, tudo de novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas." E ele corre, e olha tudo, e fala sem parar, e olha de novo, agora descobrindo o mundo...
Miguilim poderia levar uma existência inteira restrito em sua pouca visão a um mundo reduzido a imagens mínimas e sem clareza, e nem ao menos saberia que era tão míope, o mundo para ele não se mostrava claramente, mas como saber se aquela era sua condição? Ele jamais saberia.
O seu futuro seria de oportunidades reduzidas por conta de sua deficiência visual, não veria a beleza de um dia ensolarado, a natureza com suas nuances coloridas, poderia até chegar a formar família sem ver claramente o rosto de sua esposa e seus filhos, viveria sem perceber muita
Segundo Coutinho:
A literatura, como toda arte é uma transfiguração do real, é a realidade recriada, através do espírito do artista e retransmitida através da língua para as formas, que são gênero, e com os quais ela toma corpo e nova realidade.
Gostaria de reproduzir inicialmente um trecho de uma das obras mais sensíveis e comoventes da literatura brasileira, o relato sobre Miguilim personagem da obra "Campo Geral" de Guimarães Rosa. Quero assim pontuar sobre a importância da leitura de obras literárias que realmente podem literalmente "abrir" nossos olhos, e nossa mente.
Vivia, lá no longe do sertão mineiro, um menino meio calado, muito triste que buscava entender as coisas que não entendia: da sua cidade Mutum , da sua casa, da ausência – do pai e do irmão querido, Dito. Chamava-se Miguilim, e arrastava a mesmice da tristeza de seus oito anos. Até que um dia vêm vindo na estrada dois homens a cavalo. Um todo de branco, perguntava o nome do menino.
- Miguilim. Eu sou o seu irmão Dito.
- E o Dito é dono dessas terras?
- Não. O Dito está em glória – Miguilim respondeu os olhos apertados.
O doutor quis falar com o pessoal da casa. Havia gente lá? Havia, sim: a mãe, o tio Terez... já na sala, saboreando o café, o estranho torna a reparar em Miguilim.
- Esse nosso rapazinho tem vista curta – o doutor coloca seus óculos no rosto do menino.
Miguilim nem podia acreditar! Pela primeira vez via as coisas direitinho! "Tudo era uma claridade, tudo de novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas." E ele corre, e olha tudo, e fala sem parar, e olha de novo, agora descobrindo o mundo...
Miguilim poderia levar uma existência inteira restrito em sua pouca visão a um mundo reduzido a imagens mínimas e sem clareza, e nem ao menos saberia que era tão míope, o mundo para ele não se mostrava claramente, mas como saber se aquela era sua condição? Ele jamais saberia.
O seu futuro seria de oportunidades reduzidas por conta de sua deficiência visual, não veria a beleza de um dia ensolarado, a natureza com suas nuances coloridas, poderia até chegar a formar família sem ver claramente o rosto de sua esposa e seus filhos, viveria sem perceber muita
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coisa do mundo. Felizmente algo inusitado aconteceu em sua vida. Apareceu o doutor com seus óculos, e o menino pode realmente ver.
Com relação à escrita e a leitura acontece mais ou menos à mesma coisa. A leitura do texto literário representa o que os óculos representarem para Miguilim: a capacidade de enxergar aspectos da sociedade com mais entendimento e propiciar maior argúcia das mudanças do mundo ao nosso redor. E isso resulta em um encantamento maior que advêm da constatação do poder da linguagem, e particularmente o valor das palavras em nossas vidas. Se a leitura é sobre tudo a compreensão dos autores a escrita é sobre tudo a compreensão do próprio sujeito. Sem a leitura e sem a escrita, muitos relatos e histórias da humanidade de suma importância.
Precisamos nos conhecer e conhecer o outro para que possamos participar de forma plena, da vida, da vivência com os outros e da construção de uma sociedade. A escrita de Aleilton Fonseca nos proporciona uma "viagem" além da página escrita, em seus contos. Olhamos para dentro de nós e reconhecemos afinidades com as idéias que perpassam seus contos em que a memória se fez presente, vida e morte nos trazem uma possibilidade de entendimento e de atitudes perante a forma de vida que adotamos.
Existe no texto de Aleilton Fonseca um "intercambio de experiências" como pontua Rita Aparecida em seu texto Posfácio – O conto de Aleilton Fonseca: a permanência do narrador.
O escritor baiano nos traz o narrador e junto com ele toda uma riqueza do fazer literário que confere a seus contos uma beleza singular, as narrativas de Aleilton Fonseca proporcionam uma forma de catarse de nossas próprias tristezas enclausuradas e não resolvidas, aquelas que colocamos a parte no disco rígido, no HD de nossa mente e deixamos latente quando nos deparamos com a temática da morte, memórias descritas em seus contos, forçosamente às nossas lembranças vem à tona. Por isso os contos do escritor Aleilton Fonseca têm uma função terapêutica e purificadora.
Os contos de Aleilton Fonseca perpassaram temas referentes a memórias que permitem aprendizagem de vida e de morte e induz o leitor a repensar sua condição de vida.
Há sempre uma volta ao passado, lembranças reminiscências, memórias, o homem e seu passado, o passado influenciando e transformando a trajetória da vida. A inquietação e o pensamento de que o passado poderia ser diferente, e diante da impossibilidade de mudar o passado pensa-se no que se pode fazer agora a aprendizagem da vida através da morte há uma mudança de paradigma a partir do evento morte que pode ser visto no final do
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conto "O Sorriso da Estrela" quando o narrador confessa no final: "Agora eu sinto que sou Dindinho", o apelido que ele rejeitava quando sua irmã era viva.
No conto "O Sorriso da Estrela", vemos as memórias à vida e a morte mostra-se uma obra terapêutica, pois, nos coloca num estado de purificação expurgo de alma ao nos identificarmos com a situação e percebe-se o esforço de apagamento da imagem do feminino "eu a considerava um estrago na minha vida", "Quis muito que morresse". A fala do personagem perpassa a questão de gênero quando se tenta silenciar a mulher, a voz feminina é abafada, entretanto, no conto a personagem feminina é centralizada apesar de não "falar" sua memória é apresentada, sua influência é patenteada e nos diálogos relembrados passa a ser a pedra de toque e o narrador no decorrer do texto permite perceber a forte presença feminina da mãe, da madrinha, e de Estela sua irmã.
No conto Jaú dos bois, algo que nos chama a atenção é o cenário distante da urbe com suas imagens fortes que cansam a vista, a cidadezinha com sua simplicidade e carências, é também um oásis em um mundo que preza tanto o desenvolvimento tecnológico com seus problemas e neuroses. O primo vai ao encontro de seu primo segundo Jaú dos bois, para levá-lo para tratamentos médicos na capital. Ironicamente a falta de "capital" causou a doença do primo como se percebe ao longo da leitura do conto.
O filho de José saiu da cidade e foi em busca de lembranças, memórias da infância de seu pai, parte da história paterna. A vida foi dura para Jaú que não teve muitas oportunidades, sempre viveu na pequena cidade, entretanto, ele tinha um tesouro que era sua história, valia a pena todo o sofrimento da viagem que seu primo enfrentou. No conto encontramos semelhança com outras obras da literatura brasileira, como por exemplo, "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, seria Jaú dos bois outro Fabiano? Como "Fabiano: ele era um trabalhador explorado, labutava muito e ganhava pouco, era tão pouco que não dava nem para fazer uma "feira", apesar de trabalhar muito só recebia uma "ajuda".
Jaú também não tinha filhos, o que nos faz lembrar outro personagem de nossa literatura, especificamente da obra machadiana, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Onde o narrador diz que Brás Cubas não teve filhos talvez para não transmitir o legado de miséria. Teria sido esta a mesma razão do primo Jaú não ter filhos? Não teve filhos, não conseguiu comprar os bois Moreno e Marinheiro e assim livrá-los da morte, não chegou a ver sua história registrada escrita com palavras que não podia ler.
Contudo, o primo tinha esperanças, apesar de ter uma vida marcada por eventos tristes, mesmo assim ele acalentava em seu intimo a esperança que
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aquele primo que veio da cidade como um filho tardio poderia sim registrar suas memórias de infância, suas aventuras, seu ofício sua vocação no trato com os bois, sim ele nutria esta esperança que afinal seus dias estavam findando, infelizmente ele já não podia mais esperar pelo primo tinha que partir, talvez pudesse assim descansar das lembranças que tornavam seus dias tão pesados, tão difíceis de suportar e antes de morrer preparou o legado para o primo, (a sua foto ladeado pelos bois Moreno e Marinheiro) como um pedido, um último pedido quem sabe após a sua morte sua história será enfim contada. Assim Jaú dos bois morreu com o acalento de quem tem com quem contar para enfim fechar um ciclo e iniciar outro. Com início e fim.
Percebe-se uma história de amor entre Jaú e os bois o que produz uma inquietação é a presença de Marta neste conto ela era a mulher de Jaú. Uma mulher sertaneja forte e trabalhadeira que certamente deve ter contribuído para que Jaú juntasse os cinco mil que ele ofereceu duas vezes pelos bois Moreno e Marinheiro, isso nos leva a pensar que tipo de vida Jaú oferecia a sua esposa já que se conformava em trabalhar para receber menos da metade de Jaú as sobras de amor que ele dedicava todos os dias aos bois.
Segundo Michel Focault no seu livro História da sexualidade:
"Mas aquele que se preocupa consigo mesmo não deve somente se casar, ele deve à sua vida de casamento uma forma refletida e um estilo particular. Esse estilo, com a moderação que ele exige, não é definido unicamente pelo domínio de si e pelo princípio de que é preciso governar-se a si próprio para poder dirigir os outros, ele se define também pela elaboração de uma certa forma de reciprocidade; no vínculo conjugal que marca tão fortemente a vida de cada um ser idêntico a si como um elemento com o qual se forma uma unidade substancial." ( Focault, p. 164)
Marta e Jaú não eram casados de acordo com o modelo apresentado por Michel Focault, na vida do casal certamente havia interesses conflitantes, um marido que amava uma junta de bois, e que ao passar pela separação dos animais, ele não tem mais ânimo para nada, sua vida acabou. Será que Marta compartilhava esses mesmos sentimentos? Como esposa e mulher seu interesse deveriam estar bem distantes dos interesses do seu marido, certamente questionava o fato dele trabalhar quase de graça já que era ela que completava o dinheiro da feira com o fruto de sua luta árdua.
Em nenhum momento Jaú revelou que pediu opinião a sua mulher sobre a questão dos bois, se seu patrão aceitasse os cinco mil que ele ofereceu com certeza ela não seria nem consultada nesse negócio. Percebemos que Marta na primeira visita do primo larga a vassoura e vai coar o café e é só, não tem vez nem voz, não tem retrato na parede ao lado do marido, é apenas uma
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figurante na história de vida de Jaú sua função é assistir o marido na agonia de seu coração dilacerado pela perda insuportável que ela nem de longe poderia amenizar. No final do conto Marta recebe um forte abraço do primo que "transmite" para ela o abraço que seria para o primo. Ela é a porta-voz do último desejo de Jaú ela entrega o legado a ele. Stuart Hall no livro "A identidade Cultural na Pós Modernidade" diz:
Assim, a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta está sempre "em processo", sempre "sendo formada". (Hall 2006, p. 38).
Jaú construiu sua identidade, seu nome "Jaú dos bois" se configura como uma construção identitária construída e em processo e ele sentia um forte desejo de registrar para posteridade, sua história seu amor pelos bois, sua habilidade para lidar com os bois, sua disposição para o trabalho, seu orgulho de saber e fazer bem seu ofício. Ao ler o conto Jaú dos bois pela primeira vez fiz a "análise" do conto e do personagem Jaú como uma pessoa injustiçada explorada, inocente, um pobre sonhador desiludido que fora vítima de sua ingenuidade perante a vida e as pessoas, alguém que foi vítima de um jogo de poder e que perdeu esse jogo.
Entretanto, após algumas releituras cuidadosas do texto pude enxergar outro Jaú, não como vítima, mas no lugar daquele que detém o poder de mando e decisão, sem querer desmerecer a análise em que de fato ele é visto como aquele que sofre a ação. Agora olhando como aquele que pratica o mando. Como marido de Marta percebe-se que ele prescreve, ele formula e toma decisões de forma individualizada, no momento em que o patrão comunica a ele que vai vender os bois, Jaú se coloca na posição de negociante, ele decide e faz uma proposta:
-Ô seu João, eu lhe dou cinco mil hoje pelos bois, e o resto do serviço que o senhor tiver todo o seu serviço eu vou fazer de graça, não lhe custa nada. O senhor me deixa os boizinhos na canga pra eu trabalhar.
O patrão não aceitou, ele queria receber todo o dinheiro imediatamente, reflexo de uma sociedade consumista imediatista e capitalista, não havia possibilidades de aceitar a oferta de Jaú, seus sentimentos nem de longe poderia alterar a decisão do patrão, não cabia a Jaú nenhum recurso, ele não (p.7)
tinha o "capital" necessário e suficiente para fechar aquele negócio. Mas, e se o patrão aceitasse a oferta? Que mudança essa atitude provocaria em sua vida? Ele continuaria trabalhando, e de graça pelo resto de sua vida pouparia a vida dos bois, entretanto, daria tudo o que tinha. Ao reler este trecho eu parei e me perguntei: Como ele pôde tomar uma decisão desta sem consultar sua esposa? Ou a opinião dela não era importante? Marta não conseguiu ser mãe, portanto não cumpriu o que se espera de uma mulher no casamento de modelo patriarcal que é ser mãe, dedicar-se a prole seria sua missão, restou-lhe ser apenas a mulher dona de case de condição dependente e subalterna, revelando a imagem de uma mulher passiva e subserviente já que no conto o universo é completamente masculino não existe espaço para a fala feminina.
Os sentimentos e a história de Marta nem de leve são relatados, é como se ela não contasse, é como se sua presença na vida de Jaú não tivesse a menor importância. Esse apagamento da personagem Marta é gritante, entretanto, pode passar despercebido após uma leitura rápida do conto. Ao fazermos uma releitura, porém salta aos olhos à passividade, a forte característica patriarcal que faz a questão de gênero aparecer no conto e nos induz a enxergar a dominação, a opressão e a exclusão que poderia ser camuflada pela condição de Jaú que não é visto como alguém que domina.
Imediatamente percebi outro Jaú dos bois, um Jaú que amansava os bois e eles ficavam mansinhos, mansinhos... Um Jaú que tem uma esposa mansinha, mansinha, sem vez e sem voz. Ela não é consultada nas decisões que afetam o casal, decisões que dizem respeito à Marta e a ele.
O conto é narrado em um cenário onde os personagens são masculinos os únicos personagens femininos são Marta, e a "vizinha" que tem a função só de "apoio", não tem participação importante na narrativa. A partir desta constatação, percebi o "apagamento" de Marta que apesar de ser a mulher de Jaú e consequentemente deve ter sido sua ajudadora e companheira de lutas e convivência e, portanto poderia ter maior representatividade na vida de Jaú, talvez até pudesse enriquecer as narrativas da vida dele apresentando uma visão a partir da sua posição de cônjugue.
Marta aparece no conto como uma personagem que não participa, não interfere, não opina como esposa de Jaú ela aparece impotente frente aos fatos: Seu marido viveu em função do trabalho ao lado dos bois Marinheiro e Moreno, quando os bois são vendidos no pacote do negócio vai também a alegria de viver Jaú, Marta assiste a todo o processo de desgosto agonia e morte de seu marido. Ela não questiona apenas aceita os fatos. Aleilton Fonseca nos premia com seus contos. Sua prosa é leve, profunda e consistente nos envolve e nos tira da inércia de simples leitores apáticos, enxergamos muitas possibilidades e somos induzidos a pensar em tantas leituras possíveis e esta é a grande sacada deste grande escritor baiano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, (Ed, Sol) Edição auxiliar para vestibular: "Introdução" Ahcar,
COUTINHO, Afrânio (org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio 1986.
FOCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade – Tradução Tomás Tadeu da Silva, Guaraciara Lopes Louro. 6. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
ROSA, João Guimarães. Campo Geral. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile (sete novelas) Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
FONSECA, Aleilton. O desterro dos mortos: contos, Rio de Janeiro, Ed. Relume Dumará, 2001.
coisa do mundo. Felizmente algo inusitado aconteceu em sua vida. Apareceu o doutor com seus óculos, e o menino pode realmente ver.
Com relação à escrita e a leitura acontece mais ou menos à mesma coisa. A leitura do texto literário representa o que os óculos representarem para Miguilim: a capacidade de enxergar aspectos da sociedade com mais entendimento e propiciar maior argúcia das mudanças do mundo ao nosso redor. E isso resulta em um encantamento maior que advêm da constatação do poder da linguagem, e particularmente o valor das palavras em nossas vidas. Se a leitura é sobre tudo a compreensão dos autores a escrita é sobre tudo a compreensão do próprio sujeito. Sem a leitura e sem a escrita, muitos relatos e histórias da humanidade de suma importância.
Precisamos nos conhecer e conhecer o outro para que possamos participar de forma plena, da vida, da vivência com os outros e da construção de uma sociedade. A escrita de Aleilton Fonseca nos proporciona uma "viagem" além da página escrita, em seus contos. Olhamos para dentro de nós e reconhecemos afinidades com as idéias que perpassam seus contos em que a memória se fez presente, vida e morte nos trazem uma possibilidade de entendimento e de atitudes perante a forma de vida que adotamos.
Existe no texto de Aleilton Fonseca um "intercambio de experiências" como pontua Rita Aparecida em seu texto Posfácio – O conto de Aleilton Fonseca: a permanência do narrador.
O escritor baiano nos traz o narrador e junto com ele toda uma riqueza do fazer literário que confere a seus contos uma beleza singular, as narrativas de Aleilton Fonseca proporcionam uma forma de catarse de nossas próprias tristezas enclausuradas e não resolvidas, aquelas que colocamos a parte no disco rígido, no HD de nossa mente e deixamos latente quando nos deparamos com a temática da morte, memórias descritas em seus contos, forçosamente às nossas lembranças vem à tona. Por isso os contos do escritor Aleilton Fonseca têm uma função terapêutica e purificadora.
Os contos de Aleilton Fonseca perpassaram temas referentes a memórias que permitem aprendizagem de vida e de morte e induz o leitor a repensar sua condição de vida.
Há sempre uma volta ao passado, lembranças reminiscências, memórias, o homem e seu passado, o passado influenciando e transformando a trajetória da vida. A inquietação e o pensamento de que o passado poderia ser diferente, e diante da impossibilidade de mudar o passado pensa-se no que se pode fazer agora a aprendizagem da vida através da morte há uma mudança de paradigma a partir do evento morte que pode ser visto no final do
(p. 4)
conto "O Sorriso da Estrela" quando o narrador confessa no final: "Agora eu sinto que sou Dindinho", o apelido que ele rejeitava quando sua irmã era viva.
No conto "O Sorriso da Estrela", vemos as memórias à vida e a morte mostra-se uma obra terapêutica, pois, nos coloca num estado de purificação expurgo de alma ao nos identificarmos com a situação e percebe-se o esforço de apagamento da imagem do feminino "eu a considerava um estrago na minha vida", "Quis muito que morresse". A fala do personagem perpassa a questão de gênero quando se tenta silenciar a mulher, a voz feminina é abafada, entretanto, no conto a personagem feminina é centralizada apesar de não "falar" sua memória é apresentada, sua influência é patenteada e nos diálogos relembrados passa a ser a pedra de toque e o narrador no decorrer do texto permite perceber a forte presença feminina da mãe, da madrinha, e de Estela sua irmã.
No conto Jaú dos bois, algo que nos chama a atenção é o cenário distante da urbe com suas imagens fortes que cansam a vista, a cidadezinha com sua simplicidade e carências, é também um oásis em um mundo que preza tanto o desenvolvimento tecnológico com seus problemas e neuroses. O primo vai ao encontro de seu primo segundo Jaú dos bois, para levá-lo para tratamentos médicos na capital. Ironicamente a falta de "capital" causou a doença do primo como se percebe ao longo da leitura do conto.
O filho de José saiu da cidade e foi em busca de lembranças, memórias da infância de seu pai, parte da história paterna. A vida foi dura para Jaú que não teve muitas oportunidades, sempre viveu na pequena cidade, entretanto, ele tinha um tesouro que era sua história, valia a pena todo o sofrimento da viagem que seu primo enfrentou. No conto encontramos semelhança com outras obras da literatura brasileira, como por exemplo, "Vidas Secas" de Graciliano Ramos, seria Jaú dos bois outro Fabiano? Como "Fabiano: ele era um trabalhador explorado, labutava muito e ganhava pouco, era tão pouco que não dava nem para fazer uma "feira", apesar de trabalhar muito só recebia uma "ajuda".
Jaú também não tinha filhos, o que nos faz lembrar outro personagem de nossa literatura, especificamente da obra machadiana, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Onde o narrador diz que Brás Cubas não teve filhos talvez para não transmitir o legado de miséria. Teria sido esta a mesma razão do primo Jaú não ter filhos? Não teve filhos, não conseguiu comprar os bois Moreno e Marinheiro e assim livrá-los da morte, não chegou a ver sua história registrada escrita com palavras que não podia ler.
Contudo, o primo tinha esperanças, apesar de ter uma vida marcada por eventos tristes, mesmo assim ele acalentava em seu intimo a esperança que
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aquele primo que veio da cidade como um filho tardio poderia sim registrar suas memórias de infância, suas aventuras, seu ofício sua vocação no trato com os bois, sim ele nutria esta esperança que afinal seus dias estavam findando, infelizmente ele já não podia mais esperar pelo primo tinha que partir, talvez pudesse assim descansar das lembranças que tornavam seus dias tão pesados, tão difíceis de suportar e antes de morrer preparou o legado para o primo, (a sua foto ladeado pelos bois Moreno e Marinheiro) como um pedido, um último pedido quem sabe após a sua morte sua história será enfim contada. Assim Jaú dos bois morreu com o acalento de quem tem com quem contar para enfim fechar um ciclo e iniciar outro. Com início e fim.
Percebe-se uma história de amor entre Jaú e os bois o que produz uma inquietação é a presença de Marta neste conto ela era a mulher de Jaú. Uma mulher sertaneja forte e trabalhadeira que certamente deve ter contribuído para que Jaú juntasse os cinco mil que ele ofereceu duas vezes pelos bois Moreno e Marinheiro, isso nos leva a pensar que tipo de vida Jaú oferecia a sua esposa já que se conformava em trabalhar para receber menos da metade de Jaú as sobras de amor que ele dedicava todos os dias aos bois.
Segundo Michel Focault no seu livro História da sexualidade:
"Mas aquele que se preocupa consigo mesmo não deve somente se casar, ele deve à sua vida de casamento uma forma refletida e um estilo particular. Esse estilo, com a moderação que ele exige, não é definido unicamente pelo domínio de si e pelo princípio de que é preciso governar-se a si próprio para poder dirigir os outros, ele se define também pela elaboração de uma certa forma de reciprocidade; no vínculo conjugal que marca tão fortemente a vida de cada um ser idêntico a si como um elemento com o qual se forma uma unidade substancial." ( Focault, p. 164)
Marta e Jaú não eram casados de acordo com o modelo apresentado por Michel Focault, na vida do casal certamente havia interesses conflitantes, um marido que amava uma junta de bois, e que ao passar pela separação dos animais, ele não tem mais ânimo para nada, sua vida acabou. Será que Marta compartilhava esses mesmos sentimentos? Como esposa e mulher seu interesse deveriam estar bem distantes dos interesses do seu marido, certamente questionava o fato dele trabalhar quase de graça já que era ela que completava o dinheiro da feira com o fruto de sua luta árdua.
Em nenhum momento Jaú revelou que pediu opinião a sua mulher sobre a questão dos bois, se seu patrão aceitasse os cinco mil que ele ofereceu com certeza ela não seria nem consultada nesse negócio. Percebemos que Marta na primeira visita do primo larga a vassoura e vai coar o café e é só, não tem vez nem voz, não tem retrato na parede ao lado do marido, é apenas uma
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figurante na história de vida de Jaú sua função é assistir o marido na agonia de seu coração dilacerado pela perda insuportável que ela nem de longe poderia amenizar. No final do conto Marta recebe um forte abraço do primo que "transmite" para ela o abraço que seria para o primo. Ela é a porta-voz do último desejo de Jaú ela entrega o legado a ele. Stuart Hall no livro "A identidade Cultural na Pós Modernidade" diz:
Assim, a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta está sempre "em processo", sempre "sendo formada". (Hall 2006, p. 38).
Jaú construiu sua identidade, seu nome "Jaú dos bois" se configura como uma construção identitária construída e em processo e ele sentia um forte desejo de registrar para posteridade, sua história seu amor pelos bois, sua habilidade para lidar com os bois, sua disposição para o trabalho, seu orgulho de saber e fazer bem seu ofício. Ao ler o conto Jaú dos bois pela primeira vez fiz a "análise" do conto e do personagem Jaú como uma pessoa injustiçada explorada, inocente, um pobre sonhador desiludido que fora vítima de sua ingenuidade perante a vida e as pessoas, alguém que foi vítima de um jogo de poder e que perdeu esse jogo.
Entretanto, após algumas releituras cuidadosas do texto pude enxergar outro Jaú, não como vítima, mas no lugar daquele que detém o poder de mando e decisão, sem querer desmerecer a análise em que de fato ele é visto como aquele que sofre a ação. Agora olhando como aquele que pratica o mando. Como marido de Marta percebe-se que ele prescreve, ele formula e toma decisões de forma individualizada, no momento em que o patrão comunica a ele que vai vender os bois, Jaú se coloca na posição de negociante, ele decide e faz uma proposta:
-Ô seu João, eu lhe dou cinco mil hoje pelos bois, e o resto do serviço que o senhor tiver todo o seu serviço eu vou fazer de graça, não lhe custa nada. O senhor me deixa os boizinhos na canga pra eu trabalhar.
O patrão não aceitou, ele queria receber todo o dinheiro imediatamente, reflexo de uma sociedade consumista imediatista e capitalista, não havia possibilidades de aceitar a oferta de Jaú, seus sentimentos nem de longe poderia alterar a decisão do patrão, não cabia a Jaú nenhum recurso, ele não (p.7)
tinha o "capital" necessário e suficiente para fechar aquele negócio. Mas, e se o patrão aceitasse a oferta? Que mudança essa atitude provocaria em sua vida? Ele continuaria trabalhando, e de graça pelo resto de sua vida pouparia a vida dos bois, entretanto, daria tudo o que tinha. Ao reler este trecho eu parei e me perguntei: Como ele pôde tomar uma decisão desta sem consultar sua esposa? Ou a opinião dela não era importante? Marta não conseguiu ser mãe, portanto não cumpriu o que se espera de uma mulher no casamento de modelo patriarcal que é ser mãe, dedicar-se a prole seria sua missão, restou-lhe ser apenas a mulher dona de case de condição dependente e subalterna, revelando a imagem de uma mulher passiva e subserviente já que no conto o universo é completamente masculino não existe espaço para a fala feminina.
Os sentimentos e a história de Marta nem de leve são relatados, é como se ela não contasse, é como se sua presença na vida de Jaú não tivesse a menor importância. Esse apagamento da personagem Marta é gritante, entretanto, pode passar despercebido após uma leitura rápida do conto. Ao fazermos uma releitura, porém salta aos olhos à passividade, a forte característica patriarcal que faz a questão de gênero aparecer no conto e nos induz a enxergar a dominação, a opressão e a exclusão que poderia ser camuflada pela condição de Jaú que não é visto como alguém que domina.
Imediatamente percebi outro Jaú dos bois, um Jaú que amansava os bois e eles ficavam mansinhos, mansinhos... Um Jaú que tem uma esposa mansinha, mansinha, sem vez e sem voz. Ela não é consultada nas decisões que afetam o casal, decisões que dizem respeito à Marta e a ele.
O conto é narrado em um cenário onde os personagens são masculinos os únicos personagens femininos são Marta, e a "vizinha" que tem a função só de "apoio", não tem participação importante na narrativa. A partir desta constatação, percebi o "apagamento" de Marta que apesar de ser a mulher de Jaú e consequentemente deve ter sido sua ajudadora e companheira de lutas e convivência e, portanto poderia ter maior representatividade na vida de Jaú, talvez até pudesse enriquecer as narrativas da vida dele apresentando uma visão a partir da sua posição de cônjugue.
Marta aparece no conto como uma personagem que não participa, não interfere, não opina como esposa de Jaú ela aparece impotente frente aos fatos: Seu marido viveu em função do trabalho ao lado dos bois Marinheiro e Moreno, quando os bois são vendidos no pacote do negócio vai também a alegria de viver Jaú, Marta assiste a todo o processo de desgosto agonia e morte de seu marido. Ela não questiona apenas aceita os fatos. Aleilton Fonseca nos premia com seus contos. Sua prosa é leve, profunda e consistente nos envolve e nos tira da inércia de simples leitores apáticos, enxergamos muitas possibilidades e somos induzidos a pensar em tantas leituras possíveis e esta é a grande sacada deste grande escritor baiano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, (Ed, Sol) Edição auxiliar para vestibular: "Introdução" Ahcar,
COUTINHO, Afrânio (org.) A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio 1986.
FOCAULT, Michel. História da sexualidade: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós Modernidade – Tradução Tomás Tadeu da Silva, Guaraciara Lopes Louro. 6. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
ROSA, João Guimarães. Campo Geral. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile (sete novelas) Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
FONSECA, Aleilton. O desterro dos mortos: contos, Rio de Janeiro, Ed. Relume Dumará, 2001.
*Aluna do curso de pós graduação em Estudos Linguísticos e Literários da Faculdade Santíssimo Sacramento - FSSS. Alagoinhas - BA
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