Por: Aleilton Fonseca
As manifestações culturais nordestinas constituem um conjunto de práticas que valoriza fortemente as contribuições da oralidade. Na tradição escrita, sobretudo, o conto e o romance, a cultura da oralidade é um elemento intrínseco e visceral. A oralidade é tão marcante que ultrapassa os limites dos registros escritos. Como arquivo memorial de caráter multidisciplinar, reúne e dá forma aos diversos saberes, fatos e situações das diversas culturas. Essa concepção aproxima-a de algumas estratégias da narrativa de ficção, sobretudo aquela de cunho realista e da história oral. Elas utilizam métodos semelhantes para apreender os fatos e as situações que compõem a história de indivíduos (personagens na ficção e pessoas reais), e concorrem para o estabelecimento do perfil do grupo, ou seja, sua cultura, seus traços psicológicos e sociais.
A partir do século XVIII, em contato crescente com a modernidade, a cultura nordestina vem misturando as formas da tradição escrita com os acervos da oralidade. Por este ângulo, a cultura do nordeste é um conjunto de práticas e criações provenientes, sobretudo, daquilo que está “na boca do povo”.
A oralidade é uma forma de conhecimento que ultrapassa os limites dos registros da escrita. Essa cultura se afirma em diversas manifestações, entre as quais o cordel (registro escrito da experiência da oralidade) e a literatura de ficção, que mantêm um diálogo fértil com as fontes populares. A literatura nordestina incorpora as fontes da oralidade, assumindo-a como forma de seu discurso. Portanto, encontramos nos livros diversas passagens e situações que incorporam os traços marcantes da cultura oral, com forte presença do vocabulário, do imaginário e dos saberes e experiências populares. A literatura incorpora as fontes das tradições populares, as narrativas orais, os costumes, as crenças, os folguedos, as superstições, as narrativas de heróis e seus grandes feitos.
Todo escritor é também um pesquisador da cultura. Muitas vezes, com o caderno de anotações em punho que ele sai a campo, para colher depoimentos, entrevistar pessoas, fazer registros, assimilar situações, conhecer in loco os ensinamentos que as fontes orais lhe proporcionam. De volta à mesa de trabalho, ele se assemelha ao pesquisador da oralidade pelo uso do método de recolha de dados e pelo objetivo de sistematizar os sentidos apreendidos nos depoimentos e registros. Nesse caso, o escritor age como pesquisador. A diferença diz respeito aos procedimentos e à adequação aos objetivos do trabalho que se pretende realizar. O escritor difere do pesquisador pela forma de tratamento dos dados, uma vez que o utiliza como matéria-prima de sua escrita. Ele a expande através da recriação e da imaginação, valendo-se dos processos da verossimilhança para dar uma feição particular aos seus conhecimentos. Dessa forma, suas experiências e saberes pessoais tornam-se uma narrativa ficcional. Assim, a ficção nos remete às realidades existentes e observadas e ilumina nossa compreensão crítica dos processos humanos e sociais abordados.
Na criação literária esse método também promove a inserção de sujeitos sociais excluídos que, transmutados em personagens de ficção, transitam para os registros da escrita, passando a ter existência efetiva na cultura, pela via do relato e da representação ficcional, sem perder seu lastro de fontes da oralidade.
Os escritores nordestinos criam uma voz narrativa privilegiada entre duas culturas, a escrita e a oral, que são, enfim, suas culturais de formação. Ele assume a sua condição de sujeito híbrido que se movimenta no cruzamento da oralidade e da escrita. Assim, criam uma voz narrativa própria, uma voz particular que amalgama a oralidade e a escrita, criando na tradição escrita um narrador oral e popular, como um verdadeiro elo de transição cultural.
Eis um exemplo. O escritor Graciliano Ramos (1892-1953), na obra Vidas Secas (1938) mostra as personagens Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória, o Menino mais novo e o Menino mais velho como sertanejos retirantes que protagonizam o romance, publicado em 1938. Narrado em 3ª pessoa, o romance é uma travessia através do sertão, mostrando a penúria, a fome, a miséria e o abandono de uma família que vive fugindo da seca. Como se sabe, a atmosfera do romance é popular nordestino, girando em torno da condição social e das marcas culturais das personagens. O tom de oralidade é marcante, mostrando indiretamente a matéria pesquisada pelo autor através da observação, do saber da própria experiência local e dos relatos orais. Há uma passagem que ressalta a construção e transmissão do saber pela oralidade. O Menino mais velho era curioso. Ao ouvir Sinha Terta falar em “inferno”, quis mais informação. “Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma explicação, encolheu de ombros”. O menino não se convence, pois achava a palavra bonita e não podia aceitar que se tratasse de coisa ruim. Vai perguntar ao pai e é repelido. Volta a indagar à mãe que, zangada, “aplicou-lhe um cocorote”. Indignado com a injustiça, o menino vai se consolar com a fiel amiga Baleia, que lhe é solidária. “O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. A cena é um registro da cultura oral nordestina.
Os escritores criam as narrativas a partir de sua experiência e suas vivências como sujeito participante da cultura. E a realidade nordestina é muito forte no imaginário e no processo de criação dos autores. Eles participam dos textos que representam a vida, as memórias e a cultura popular. A narrativa nordestina apresenta as marcas dessa cultura nos discursos e atitudes das personagens, nos enredos, na linguagem e no vocabulário. Desse modo, os saberes da oralidade permanecem vivos nos homens e mulheres que, sujeitos de seus processos de existir e de viver, emprestam suas vozes e testemunhos tanto à história como à literatura.
Disponível também em: caramure
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