segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A VINGANÇA DO SERTANEJO NO ROMANCE NHÔ GUIMARÃES DE ALEILTON FONSECA




O texto abaixo está disponível em: Fólio: Revista de Letras

Por: Helder Santos Rocha[1]
Márcio Roberto Soares Dias[2]


Resumo: Partindo de uma releitura de alguns causos narrados no romance Nhô Guimarães (2006), de Aleilton Fonseca, em que se destaca a vingança motivada, a priori, pela honra e pela justiça do sertanejo como mola propulsora das manifestações de violência que impulsionam cada narrativa, o presente texto pretende dispor de um olhar, ainda discreto, sobre o valor cultural deste código da vindita no sertão e sobre a apropriação ficcional desta temática. Busca-se ancorar, mais detidamente, nos postulados teóricos de Antônio Cândido (2006a; 2006b); Afrânio Coutinho (2008); Gilles Lipovetsky (2005) e Walter Benjamin (2011), para esta investida inicial.
Palavras-chave: Vingança; Literatura; Cultura.


“Meu senhor, honra é coisa boa, porém ruim. (...) De lado a lado, homens e animais, munição feita, com desejo de morte e vingança.”

(Nhô Guimarães – Aleilton Fonseca)

Um breve introito ao romance

            O romance do escritor baiano contemporâneo Aleilton Fonseca, Nhô Guimarães, foi publicado em 2006 pela editora Bertrand Brasil. Na sua proposta inicial, o texto que foi escrito em homenagem ao escritor mineiro João Guimarães Rosa devido à comemoração dos cinquenta anos da publicação de Grande Sertão: Veredas, sua obra mor, com a qual esta outra obra independente dialoga bastante. O romance de Aleilton Fonseca teve antes desta oportunidade um formato menor de conto que foi publicado num outro livro do autor, intitulado Desterro dos mortos (2001). No entanto, segundo Santos e Queiroz (2011, p.832), o autor sentiu a voz narrativa o incomodar mais uma vez e daí passou a transformar o que era, inicialmente, uma narrativa curta em uma novela. Posteriormente, talvez em virtude de perene insatisfação, o texto ganhou outras proporções e passou de novela à romance.
            Uma das marcas constantes na narrativa de Nhô Guimarães é a semelhança estilística e temática com a obra do homenageado João Guimarães Rosa, aspectos, aliás, que o próprio escritor baiano afirmou lhe servir de fonte de criação. Segundo Aleilton Fonseca (2002, p.384),

(...) é uma aproximação paradoxalmente distanciada, de modo a evitar as demasias, não vestir o gibão de Rosa, que só a ele lhe pertence por invenção particular e estatuto canônico. Mas, ao largo, nas vizinhanças, nos arredores de seu sertão – voltar à fonte primordial – onde ele bebeu e generosamente cavou poços de sentidos, inesgotáveis. Reabraçar o sertão em estado de matéria-prima, de onde ele partiu – e nós também temos o direito de partir.

            Não obstante, Nhô Guimarães ultrapassa o mero diálogo e a merecida homenagem à Guimarães Rosa, enveredando, ele próprio, em novas incursões pelo sertão e temáticas ligadas à cultura do povo que o habita. Com este olhar, o escritor baiano elabora uma narrativa em que sobressaem tanto uma intertextualidade independente quanto, por assim dizer, procedimentos artístico-literários próprios ao grande escritor mineiro, como mote para trabalhar e inventar a sua própria arte-verbal. Sobre esta peculiaridade da narrativa de Aleilton Fonseca, em questão, e, por extensão, da sua obra, Olivieri-Godet (2010, p.97-98) afirma que

numa linguagem extremamente inventiva e saborosa, o texto realiza um reaproveitamento lúdico dos dados biográficos do escritor mineiro, faz uso de procedimentos narrativos próprios de sua obra, explora as relações entre experiência e relato. Consegue dessa maneira recriar uma atmosfera rosiana num texto que não é mais de Rosa, radicalizando assim o diálogo intertextual na experiência de falar o outro sem ser o outro.

            Nessa perspectiva, o romance Nhô Guimarães se apresenta como um grande convite ao leitor para conhecer o sertão por meio de alguns dedinhos de prosa com uma senhora octogenária e viúva, sempre com um “causo” na ponta da língua para entreter o seu único visitante, um interlocutor oculto. Tratam-se de estórias surpreendentes, guardadas na memória e contadas com a fluência típica da sabedoria popular. Como questões centrais de suas narrativas, estão as lembranças da amizade que seu finado marido, seu Manuel Adeodato, ou “Manu”, espécie de curandeiro da região, tinha com Nhô Guimarães (o próprio escritor mineiro), que, em suas viagens, costumava aparecer para lhes fazer uma visita, “assuntar” e aprender com Manu um pouco da medicina caseira e natural, e para prosear sobre assuntos corriqueiros do dia a dia da vida daquele povo sertanejo.

A vingança em Nhô Guimarães

            Dentre questões, aspectos e temas tratados ao longo do romance Nhô Guimarães, nos mais de trinta “causos” contados pela narradora sertaneja, uma temática ganha corpo e relevo: a manifestação da vindita, ou as suas irrupções, presente em pelo menos cinco estórias. Como tema amplamente abordado pela literatura universal, sua repercussão analítica também possui um histórico grande e reconhecido, por se tratar de um aspecto social relevante e fértil para a criação artística e literária. Assim, tem-se à disposição uma gama de conhecimento oriundo das ciências humanas e sociais, que já abordaram a vindita ou o código da vingança, devido ao seu aspecto judiciário de conduta, como prática social.
            Na arte e na Literatura, a vingança é tratada como um bom motor de acontecimentos encadeados e bem ordenados, elementos primordiais para a construção do gênero narrativo e ficcional. Segundo Antônio Candido (2006b, p.26), “a perfeita visão da vindita não se realiza num só momento; requer o encadear sucessivo de acontecimentos que levam do motivo inicial à desforra final”. Por isso, sua melhor adequação formal aos gêneros narrativos e também dramáticos.
            Como bons exemplos de textos literários canônicos e mundialmente conhecidos, pertencentes tanto ao gênero narrativo como ao dramático, que se apropriaram do código vingativo para movimentar suas tramas, podem ser mencionados, aqui, a Ilíada de Homero, Hamlet de Shakespeare, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Marquez. Contudo, parece ser em algumas cenas da vindita em Grande sertão: veredas, Sagarana e Primeiras Estórias[3], de Guimarães Rosa, que se exemplifica a questão do código da vingança como lei cultural de conduta das relações sociais sertanejas mais especificamente.
            Já no romance de Aleilton Fonseca, em questão, sobressaem manifestações de violência que sinalizam um claro direcionamento para a desforra, motivada por alguma ação que atenta contra a honra ou a dignidade de algum indivíduo ou família, como nos excertos a seguir extraídos da narrativa:

- Como me informaram, o senhor confere: é quem procuro, autor de um crime contra gente minha. Agora é sua vez de morrer. (FONSECA, 2006, p.20)

Nhô Barreto, demais envelhecido e adoentado, na hora da morte, pediu ao filho mais velho que buscasse e matasse a irmã em nome da família. (FONSECA, 2006, p.157)

Vivia para vingar o filho. (FONSECA, 2006, p.81)

            Neste viés, a vindita se apresenta, aqui, como uma prática de um código não escrito, porém legitimado pelos sujeitos que a ele se submetem em respeito aos costumes e à tradição, à moral e a uma ética do povo sertanejo. Com um sentido que visa o equilíbrio das relações sociais, segundo Gilles Lipovetsky (2005, p.150), “o código da vingança é empregado para impedir o surgimento do indivíduo independente, voltado para seu próprio interesse. Nesse caso, é colocada em ação a prioridade do todo social sobre as vontades individuais...” É importante perceber, neste sentido, que as estórias presentes em Nhô Guimarães, nas quais a vingança aparece, sempre trazem uma questão que envolve as relações pessoais e de parentesco, ou seja, envolvem um laço de sangue: “Cresci para vingar o nosso sangue.” (FONSECA, 2006, p.21).
            O sangue ou o seu derramamento, aliás, é um aspecto presente e necessário para a limpeza da honra do cobrador ou do vingador em algumas destas estórias narradas. Trata-se de uma espécie de tortura em que não basta somente a punição ou a devolução de uma ação maléfica, mas de um ensinamento. A vingança extrapola o sentido da punição como ato meramente retributivo a uma ação condenada pelos costumes, erigindo-se como remédio purgativo a ser ministrado ao agente da infração no afã fazê-lo remir sua culpa e de se arrepender por meio do sofrimento extremo e da morte lenta. Neste viés, a vingança, enquadrada dentro de uma moral e de uma ética próprias ao sertão em certo momento histórico, atua como elemento de regulação das ações dos indivíduos, e não como manifestação de violência desregrada.

- O senhor vai morrer sabendo que morre, com esse chuço varando seu coração no fim. Não foi desse jeito que procedeu contra gente minha? (FONSECA, 2006, p.23)

- Seu Nenzinho, socorro!
Nenzinho virou pedra? De pé estava, ali ficou, sem mover um dedo, só apreciando o desastre. (FONSECA, 2006, p.115)

            Nestes excertos, tanto no questionamento final do primeiro causo quanto no comentário do narrador deste último, evidencia-se o aspecto lento das ações vingativas dos personagens (vingadores). Assim, tanto a omissão de Nenzinho quanto o jeito perverso de se vingar apresentado na primeira estória, configuram o caráter de purgativo que leva à reflexão aqueles que se tornam objeto da vingança.
            Na relação envolvendo as ações vingativas dos indivíduos e as suas respectivas motivações vê-se presente uma noção de honra, que, a priori, seria a razão da própria existência do código da vingança que regula a conduta das pessoas a ele submetidas. Para Borba (2007, p.44), “a supervalorização da honra difere, sob certos aspectos, entre os grupos sociais, mas mantém um aspecto em comum: o olhar do outro sobre o que o sujeito é ou aparenta ser”. Aqui, o sentido da honra estaria próximo de uma ideia de respeito e dignidade que a sociedade espera de um indivíduo. Portanto, a perda da honra repercute no grupo social que espera uma reação à altura da ofensa desferida, a fim de que a lei consuetudinária seja respeitada. Esse agravo à honra configura-se, portanto, como um motivo legítimo para que se busque a reparação dos danos por meio de um mal igual ou maior sobre o outro sujeito que iniciou a relação de afronta.
            Em certos “causos” relatados pela narradora de Nhô Guimarães, esta ideia de afronta à lei e à ordem consuetudinárias se apresenta com nitidez, como na estória da moça, filha de um fazendeiro, que se apaixona por um rapaz pertencente a uma família rival à sua. Se a paixão leva o moço a dirigir-se ao pai de sua pretendente para solicitar-lhe a mão da filha em casamento, a humilhação em público por que passa no momento em que lhe é recusado o pedido ganha dimensão desmedida, afigurando-se como grave afronta à honra, uma vez que o expõe diante do seu círculo social. Há uma espécie de subversão da ordem social, que somente será restabelecida por meio de ações contundentes. Como adverte a narradora,

nunca humilhe pessoa alguma, qual seja inimigo derrotado na afronta, na briga, no braço ou na palavra. Evite esticar rezingas, cometer destratos que deixam o sujeito quieto, abatido, cabisbaixo, com gosto e sina de se vingar. Desavença recolhida é coisa muito perigosa. (FONSECA, 2006, p.112-113)

            Ora, a “honra é coisa boa, porém ruim. (...)” (FONSECA, 2006, p.160); ou seja, trata-se de um bem simbólico almejado por todos. No entanto, os elementos que envolvem as insígnias dessa distinção valorizam-se de tal forma que a vida em sociedade torna-se insuportável se algo lhe abala o mérito. Assim, no contexto histórico e social das narrativas de Nhô Guimarães, não há possibilidade de definir se a defesa da honra seria algo reprovável. Ela existe, faz parte da cultura, independente de qualquer julgamento favorável ou não. Por isso, os atos perpetrados para recuperá-la nem sempre são passíveis de recriminação.
            Muitas vezes percebida como uma ação que visa o restabelecimento de uma situação de ordem momentaneamente abalada, estaria contida na vingança uma noção de justiça, assim entendida como equilíbrio e quitação de pendências oriundas das relações sociais travadas por sujeitos, com o sentido de cobrança e de ajuste entre dois ou mais indivíduos que possuem uma causa em comum. Neste momento, torna-se importante compreender a apropriação do termo “justiça”, uma vez que se tem a existência de alguns significados não muito convergentes.
            Para a exemplificação de algumas apropriações do termo, no dicionário da Língua Portuguesa[4], por exemplo, o vocábulo “justiça” possui um sentido de ser ou estar em conformidade com o Direito e com o julgamento das causas, segundo a melhor consciência. Nota-se que, neste caso, a justiça é entendida, também, como uma entidade, uma corporação ou uma instituição que detém o poder de arbitrar sobre os efeitos do desajuste social. Sob este viés, os sujeitos não poderiam praticar atos conforme o seu entendimento da situação, sem uma intervenção de um terceiro elemento: o Estado, legítimo monopolizador do poder coator e de sanção. Em outras palavras, qualquer um que estivesse submetido à norma positivada, não teria o direito de promover a justiça por suas próprias mãos e, portanto, não poderia se vingar de uma desonra. Aqui, apresenta-se, claramente, uma noção de monopólio da violência por parte da instituição estatal na figura da justiça/Direito, como medida preventiva contra qualquer desordem pública ou afronta ao ordenamento jurídico. Segundo Benjamin (2011, p.127),

(...) talvez se devesse levar em conta a possibilidade surpreendente de que o interesse do direito em monopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do direito.

            Neste sentido, o que se esconde por trás da ideia de leis de bem social e de justa medida é uma ideologia pautada na regulação universal da sociedade para, na realidade, ocultar interesses outros da classe dominante na figura do Estado. Para Marilena Chauí (2006, p.82),

através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes.

Já um outro modo de interpretar a justiça que foi e ainda é bastante relevante na sociedade, origina-se do discurso bíblico cristão que afirma que quem detém poder  absoluto de arbitrar pelas causas humanas e nas relações sociais é Deus. Na Epístola aos Romanos (Cap.12:19), São Paulo diz: “amados, não façam justiça por própria conta, mas deixem a ira de Deus agir, pois o Senhor diz na Escritura: “A mim pertence a vingança; eu mesmo vou retribuir.”” Na carta de São Paulo, há uma advertência para as ações vingativas dos indivíduos, retirando o direito desses para suas reparações e transferindo o poder de arbítrio para Deus. Ninguém possui o direito do livre agir com relação à cobrança de algum mal e, se o fizer, pode até ser punido pela justiça divina. O monopólio do poder punitivo troca de mãos hoje, deixando a esfera religiosa em favor da dimensão laica da justiça estatal moderna.
            No entanto, apesar de estas duas vertentes, a religiosa e a estatal, procurarem construir uma noção de justiça plena, parece sobreviver uma noção de justiça baseada em um direito natural. Deste modo, num primeiro momento, a leitura destas estórias de vingança presente em Nhô Guimarães aponta para a existência de um código bem instituído e difundido no contexto sertanejo, que se aproxima muito do mandamento seco e árido de Talião, presente na Escritura bíblica em Êxodo (Cap.21:24). O princípio do “olho por olho, dente por dente”, impetra um equilíbrio forçado ao regular as ações de reparações de danos entre os indivíduos, além de buscar uma tentativa de impedir que a própria vingança se torne desregrada e ultrapasse seus limites.
            Em muitos causos contados pela narradora sertaneja, a apropriação da vingança é de suma relevância para a construção da narrativa e, mais ainda, para a concretização e o desfecho de várias estórias. A vingança sendo ela, a própria vindita, configura-se como o cumprimento legítimo de uma promessa que tem o valor de lei para os sujeitos deste contexto. Mas uma lei que, antes de tudo, é cultural, e não, institucional e individualista. Assim, o ato de violência ou a desforra exercida por membros de uma mesma ou de diferentes comunidades possui uma razão de ser cuja instituição se dá a partir da sobreposição de um ideal coletivo em relação ao desejo individual (LIPOVETSKY, 2005, p.147). Isso contraria a ideologia do individualismo burguês e citadino, fruto de um sistema capitalista que incentiva a concorrência entre os sujeitos e que também congrega uma ideia de vingança, estando muito mais próxima de um ideal romântico e iluminista.
            Esta lei ou este código constitui, de fato, uma regra de interação entre os sujeitos que compartilham certa identidade cultural sertaneja. Portanto, não se trata de violência gratuita ou de selvageria de um povo que vive à margem da lei (institucional). Acerca disso, Franco (1974, p.25) assevera que

os ajustes violentos não são esporádicos, nem relacionados a situações cujo caráter excepcional ou ligação expressa a valores altamente prezados os sancione. Pelo contrário, eles aparecem associados a circunstâncias banais, imersas na corrente do cotidiano. [...] A violência que os permeia se repete como regularidade nos setores fundamentais da relação comunitária: nos fenômenos que derivam da “proximidade espacial” (vizinhança), nos que caracterizam uma “vida apoiada em condições comuns” (parentesco). Essa violência atravessa toda a organização social, surgindo nos setores menos regulamentados da vida, como as relações lúdicas, e projetando-se até a codificação dos valores fundamentais da cultura.

            Para a apropriação ficcional de um tema social relevante e característico de determinada cultura, como é o caso da vingança, o autor se dispõe a fazer um levantamento de suas características peculiares que poderão lhe servir de combustível para dar movimento às ações de seus personagens. Segundo Coutinho (2008, p.51), “a narrativa implica uma técnica de arranjo e apresentação, que lhe comunica estrutura arquitetônica, beleza de forma e unidade de efeito.” E o tema acaba constituindo uma espinha dorsal desta “estrutura arquitetônica”, na qual todos os outros elementos preponderantes para a construção, como o tempo, o espaço, os personagens, o enredo e todas as peculiaridades estilísticas que compõem o todo da obra literária, se encontrem interligadas através deste fio condutor. Neste sentido, a vingança com o seu propósito de desencadear um deslocamento de ações e de atitudes dos personagens envolvidos a partir de um conflito, para que a narrativa produza um desenvolvimento e a busca de um desenlace até que esse aconteça se configura como um tema de grande relevância para a composição literária deste gênero, como, de fato, ocorre em algumas estórias encontradas no romance Nhô Guimarães.

Últimas considerações
           
            O código da vindita no sertão requer aprofundamento analítico, sobretudo se se quer compreender o caráter formador de seus princípios culturais. Trata-se de uma prática social regulamentada em seu contexto, diferentemente, das práticas de conduta e de violência originadas no ambiente citadino que é bem mais vigiado e controlado pela polícia e pela legislação escrita, características fundantes e peculiares da ordem das instituições estatais modernas. Afinal de contas, há configurações culturais distintas que possuem, cada uma, um modo peculiar de aprender, agir e difundir suas noções sobre suas próprias condutas e costumes.
            O que se pretende, com o desenvolvimento e aprofundamento deste estudo, é a produção de conhecimento que negue qualquer juízo de valor ontológico padronizado sobre as condutas dos sujeitos que se inserem neste código sertanejo, ou noutros códigos, cuja força e poder do contrato, via palavra oral, firmado entre os membros envolvidos nesta cultura tornam-lhes bem mais legítimo do que qualquer lei de papel ou da linguagem escrita, uma característica do Direito institucional do Estado moderno, presente na origem e na fundação das cidades. Neste sentido, ancora-se nos postulados teóricos de Candido (2006a, p.53), quando esse afirma que...

a verificação de que as culturas são relativas leva a meditar em tais singularidades, que seriam explicadas, não à luz de diferenças ontológicas, mas das maneiras peculiares com que cada contexto geral interfere no significado dos traços particulares, e reciprocamente, - determinando configurações diversas.

            Esta concepção interpretativa a que se faz preferência pretende evitar um ponto de vista unívoco e unidirecional que, com certeza, anularia várias possibilidades de conhecer e compreender as manifestações culturais peculiares de diversos grupos sociais não enquadrados num modelo analítico, que utiliza-se da observação de uma conduta moral e ética do homem ocidental civilizado como parâmetro comparativo para outras culturas.
            Por fim, as primeiras análises da construção ficcional desta narrativa do escritor contemporâneo, Aleilton Fonseca, indicam que a temática sertaneja está sendo revisitada e reinterpretada, visando encontrar parâmetros adequados de abordagem da sua cultura específica de forma mais atualizada e pouco idealizadora. Assim, a homenagem ao cinquentenário da obra rosiana, Grande Sertão: veredas, não é por acaso e menos proposital do que possa parecer. Antes de tudo, trata-se de uma continuidade desta visão sobre o locus sertanejo, tanto geográfico como simbólico, que o mestre mineiro aprofundara na literatura nacional, mas que também apontou veredas possíveis para outras leituras dentre as quais se apresenta a de Nhô Guimarães.

LA VENGANZA DE LOS CAMPESINOS EN LA NOVELA NHÔ GUIMARÃES DE ALEILTON FONSECA
 
RESUMEN:
A partir de una relectura de algunos cuentos relatados en la novela Nhô Guimarães (2006), de Aleilton Fonseca, en el cual se destaca la venganza motivada, a priori, de honor y justicia del campesino como fuerza propulsora de las manifestaciones de violencia que cada unidad narrativa, este texto pretende analizar, aún en un discreto, el  valor cultural de este código de vindita en el interior y sobre la propiedad ficticia de esta temática. Es ancla, más  cuidadosamente, en postulados teóricos de Antonio Candido (2006a; 2006b); Afrânio Coutinho (2008); Gilles Lipovetsky (2005) y Walter Benjamin (2011), para este primer análisis.
PALABRAS-CLAVE: Cultura; Interior; Narrativa; Venganza.

Referências

BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: GAGNEBIN, Jeanne Marie (Org.); LAGES, Susana Kampff; CHAVES, Ernani (Trad.). Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2011. p.121-156.

BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1991.

BORBA, Marileda Inês de. Noções e conceitos de honra. In:______. O crime em defesa da honra e a narrativa literária: um entrecruzar de caminhos da literatura e do pensamento jurídico. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Abril de 2007. Cap. 2, p.12-46.

CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 9.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. [E-book – digitalização do grupo Digital Source/Lara (digit.); Dayse Duarte (Rev. e format.)].

______. Da vingança. In:______. Tese e Antítese. 5.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. p.15-38.

CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2006.

COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

FONSECA, Aleilton. Nhô Guimarães: romance – homenagem à Guimarães rosa. In: DÓREA, Juraci (ilustrações). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

______. Nas trilhas de Rosa travessia do rio perigoso. In: Revista - SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 5, n. 10. [Depoimentos – Parte 3] - 1º sem. 2002. p. 379-385.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974.

LIPOVETSKY, Gilles. Violências selvagens, violências modernas. In: DEUTSCH, Therezinha Monteiro (trad.). A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2005, p.145-188.

MAIA, Dália Maria B.; CAVALCANTE, Peregrina Fátima Capelo. Sertão, espaço e tempo: conflitos de famílias e vingança privada. In: Revista – O público e o privado – n.7, jan-jun/2006. p.83-97.

OLIVIERI-GODET, Rita. Aleilton Fonseca: o engenho do faz-de-conta como aprendizagem da vida. In: Revista da Academia de Letras da Bahia, n.49, dez/2010. [Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias] – Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2010. p.95-101.

SANTOS, Adna Evangelista Couto dos; QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. O processo de escritura do romance Nhô Guimarães de Aleilton Fonseca. In: Anais do XV Congresso Nacional de Linguística e Filologia - Cadernos do CNLF, v.XV, n.5, t.1. Rio de Janeiro: CIFEFIL, 2011. p.823-834.


[1] Mestrando em Letras: Cultura, Educação e Linguagens pela UESB. Bolsista FAPESB. E-mail: heldersantosrocha@gmail.com.
[2] Doutor em Letras pela UFBA. Professor de Teoria da Literatura e Ciências Humanas, vinculado ao DELL/PPGLCEL/UESB. E-mail: marciouesb@gmail.com.
[3] Os dois últimos títulos rosianos mencionados tratam-se de livros de contos dos quais poderiam ser destacados com o tema de vingança “Duelo” de Sagarana (1996) e “Os irmãos Dagobé” de Primeiras Estórias (2005).
[4] Minidicionário da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno (Ed. FTD).


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