Ideias antecipa trecho do lançamento 'O pêndulo de Euclides'
Jornal do Brasil
RIO - Além de Os sertões – que nasceu de um relato jornalístico – a Guerra de Canudos gerou também algumas obras de ficção, entre elas o caudaloso romance Guerra do fim do mundo, considerado pelo autor Mario Vargas Llosa um dos mais bem realizados que já cometeu. Menos conhecida, mas nem por isso indigna de interesse, é a novela A casca da serpente, de José J, Veiga, publicada em 1989 – e que merece reedição por estar há muito tempo desaparecida das livrarias.
Agora é a vez de o escritor baiano Aleilton Fonseca mergulhar no tema, com o romance O pêndulo de Euclides, que a editora Bertrand Brasil manda para as livrarias na próxima semana.
O Ideias apresenta abaixo, com exclusividade, os dois primeiros capítulos da obra. Trata-se do relato de uma viagem de três amigos (um professor baiano, um poeta carioca e um brasilianista francês) à cidade de Canudos atual para uma visita ao campo da guerra onde existiu o Arraial de Belo Monte, fundado e liderado por Antônio Conselheiro. Durante a viagem, eles debatem temas e razões do conflito, e algumas das ideias de Euclides da Cunha. A foto que ilustra o texto, de Evandro Teixeira, mostra a cidade de Rosário, cenário das batalhas. A igrejinha branca ao fundo foi construída pelo próprio Conselheiro.
Trecho do livro:
A Guerra de Canudos foi o conflito mais trágico e sangrento do Brasil. Era o que mais se repetia nas palestras do seminário, que reunia professores, estudantes e pesquisadores. A universidade parecia estar em festa, com gente se acotovelando nos corredores e auditórios. A última conferência concluía o evento com chave de ouro. Eu, atento, nem sempre estava de acordo com o que ouvia.
O conferencista encerrou suas palavras dizendo em tom de máxima que, mais de 100 anos depois, a guerra era um tema exaurido. Nada de novo havia a dizer ou acrescentar. Tudo estava dito, registrado, lido e analisado.
Ergui o braço para questionar, porém meu gesto não foi atendido. Era a conferência final do seminário e não haveria debates. A plateia já se levantava apressada. Continuei no meu lugar, enquanto as pessoas deixavam o auditório. Lá fora começava o alarido do coquetel de encerramento. Fiquei só e pensativo.
Veio-me à tona uma ideia que desde alguns anos me martelava a cabeça. Há tempos eu planejava ir até a região de Canudos para conhecer o local da guerra. Queria conversar com as pessoas, anotar suas impressões, elaborar um texto. Pretendia recolher resquícios da memória do conflito a partir de depoimentos dos descendentes dos sertanejos.
Meu sonho era escrever um livro. Eu queria fazer um ensaio, uma entrevista, ou mesmo um romance, em que uma voz sertaneja narrasse os eventos da guerra. Seria um narrador canudense que relatasse – de dentro – as quatro batalhas, ou seja, os quatro fogos da guerra, conforme denominava Antônio Conselheiro.
Ao final do evento, saí da universidade pensando seriamente no assunto, a caminho da pousada onde estava hospedado no centro da cidade.
Ao chegar fui direto para o apartamento. Fazia muito calor. Depois de um banho, tomei uma cerveja para refrescar a garganta, saboreando cada gole. Fiquei matutando. Certamente o conferencista quis dizer que a história de Canudos está devidamente assentada nos livros, nos ensaios, nos romances, na poesia, no cordel, nas fotos e nos jornais da época. Um acervo que dá conta dos fatos e de suas consequências históricas e sociais.
Mas tudo isso esgota mesmo a história da guerra? Nada mais há além do silêncio? Nada mais ecoa nos campos calcinados da memória que subjazem nas águas? Só nos resta interpretar as marcas do passado? De certa forma, sim. De alguma maneira, não.
É certo que textos, objetos e documentos falam por si. E as vozes do sertão? O que elas têm a dizer? Lembrei de uma célebre frase do escritor francês André Gide, que nos ensina: “Tudo já está dito; mas, como ninguém escuta, é preciso sempre recomeçar”.
O conferencista fora enfático ao afirmar: “Canudos é um tema exaurido”. Discordei na hora. Não, não é, pensei comigo mesmo. E de novo me animei.
Tudo isso açulou o meu antigo desejo de percorrer o sertão de Antônio Conselheiro. Eu podia visitar o local da guerra e depois escrever o livro. Peguei o mapa da região, anotei as informações gerais na agenda e preparei a mala de viagem. Eu precisava conhecer Canudos.
DESCOBERTA – 2º CAPÍTULO
As imagens de Canudos e de Antônio Conselheiro entraram cedo em minha vida. E não foi através da escola. Nas aulas de história, só os velhos temas. Ensinavam-me a repetir datas e fatos e a admirar as personagens oficiais. Pior: aos oito anos de idade fui obrigado a me perfilar junto com os colegas no pátio da escola, no longínquo dia 31 de março de 1968, para cantar o Hino Nacional em louvor à ditadura militar de então. Obrigada a cumprir ordens, a escola traía com isso a inocência de minha idade.
Nunca me contaram nada sobre Canudos.
Mas eu descobri.
Aos 12 anos ganhei de presente de meus pais uma coleção de dicionários da antiga Editora Globo, em seis volumes de capa grossa e cor azul. Cada um era dedicado a uma área do saber. Passei a ler a esmo os verbetes do Dicionário de História do Brasil, fixando-me naqueles que me pareciam mais interessantes.
Canudos. Esse verbete despertou minha atenção.
Eu ia lendo, e os fatos narrados me fascinavam e excitavam a minha imaginação. Ali eu aprendia a história de Antônio Conselheiro e do Arraial do Belo Monte.
Ademais, a minha avó Laudilina nasceu
Certa vez perguntei à minha avó o que ela sabia sobre a guerra dos sertanejos. E ela, com paciência e boa vontade, puxou pela memória e tentou me explicar:
– Ah, meu neto... De pequena, eu me lembro que falavam sobre o Conselheiro. Diziam que era um homem santo que havia lutado muito pelo povo do sertão. Mas contavam isso à boca pequena, com medo da polícia. Quem falasse a favor do beato podia até ser preso. As pessoas tinham muita cautela de tocar no assunto. Escondiam e até negavam o parentesco com os infelizes fiéis de Canudos.
– E por que elas faziam isso, vó?
– Ora, porque tinham medo da polícia! Muitas diziam que os soldados iam retornar um dia pra atirar em todos, tocar fogo nas casas e degolar o povo que havia restado no sertão. Com isso, muita gente se amofinava, ficava tudo quieta, acuada, nas brenhas dos lugares ermos. É só dessa cisma que eu me lembro um pouco.
E resumiu, baixando a voz, num tom de compaixão:
– Aquela guerra foi uma grande injustiça.
Depois de ouvir as palavras da avó Laudilina, eu corria de volta ao dicionário. E ficava surpreso e impressionado com os personagens que realmente viveram, lutaram e morreram nos tempos passados.
Ali se narravam fatos que me pareciam semelhantes às antigas histórias que eu tanto ouvira contar na infância. No entanto, eu sabia a diferença: aquele livro trazia eventos reais, vividos e registrados.
Canudos entrava, assim, em meu universo de saberes; e já fazia parte de minha vida.
18:17 - 14/08/2009
Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/08/14/e140821317.asp Acessado em: 18/08/09
2 comentários:
Li O Pêndulo de Euclides no original, depois o reli realizado em livro impresso, bela capa e acabamento. Se a leitura deu-me a primeira impressão de um grande livro, a releitura não só confirmou a primeira impressão, como trouxe a certeza de ser o maior livro de Aleilton, a mim que conheço todos os seus anteriores. Esperemos o próximo.
Olá Gláucia,
Fico honrada com sua visita neste lugar de homenagem e divulgação do Escritor Aleilton. Já li algo sobre vc, tive uma professora na graduação que nos fez perceber como a literatura baiana é produtiva e como está efervescente . Cada vez mais, sinto que Aleilton está se tornando grande em sua escrita, e isso se reflete na aceitação q ele está tendo...
Caso queira contribuir com material ou uma critica a ser postada no blog, será um prazer!
Abraços querida
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