Depois passem aqui para me dizer como foi...pois estou a léguas de distância de Feira de Santana...bjs
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
Lançamento de O pêndulo de Euclides em Feira de Santana-BA
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segunda-feira, 26 de outubro de 2009
ALEILTON FONSECA - ENTREVISTA NO LEITURAS, TV SENADO
Link da entrevista de Aleilton Fonseca ao Leituras
http://www.youtube.com/watch?v=b5TlyqEndlg (parte 1)
http://www.youtube.com/watch?v=2EpUefpUMZI (parte 2)
http://www.youtube.com/watch?v=0upq2hVwBXw (parte final)
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
terça-feira, 13 de outubro de 2009
Dueto de realidade e ficção
Por Gerana Damulakis
A verdade verdadeira é sempre inverossímil, você sabia? Para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira.
Stiepan Trofímovitch, em Os demônios, de Dostoiévski
O romance O pêndulo de Euclides (Bertrand Brasil, 2009), de Aleilton Fonseca, é, antes de tudo que há para dizer, emocionante. Três intelectuais, após a última palestra sobre a Guerra de Canudos, viajam rumo ao sertão. Um deles é o narrador principal, é aquele que segue viagem, não apenas para ver in loco o rincão da guerra, mas em busca da solução para uma cisma, que traz dentro de si.
As páginas de Aleilton Fonseca estão impregnadas de uma admiração pela matéria histórica, que exala da alma de escritor, como a aura dos iluminados — Um iluminado ali congregou toda uma população (E. da Cunha) —, e, assim, a eleição da matéria é o próprio humo, a terra vegetal fértil, do qual brotou o romance.
O título sugere que, se há um pêndulo, forçosamente haverá um movimento determinado: o movimento pendular traça uma trajetória, que parte de um extremo e alcança seu oposto. Usando a nossa intuição, presumimos que algo mudará no decorrer do romance. Como? Fazendo os leitores palmilharem, — metaforicamente, percorrendo a pé, como se no sertão estivessem —, os confins entre a realidade do sertão e a verdade ficcional com seus mitos.
Se não esquecermos que a fantasia de todo escritor é sua visão do mundo, ou seja, o motor que o desperta e o norteia, então, os emblemas que para ele oferecem os entes e os agentes, sem dúvida, são o que Aleilton cria e alça como uma voz que resgata, num plano que é sede da atenção, tanto na história, quanto na literatura.
Impressiona o vigor do empenho e do comprometimento pessoal da voz narradora — claramente, a do próprio autor —, manifestando entendimentos que não são decorrentes de investigações e análises desordenadas e estouvadas, ou mesmo, apenas ocasionais, mas, sim, de toda uma existência, somando, aos conhecimentos lembrados e anotados, minúcias que engrandecem a ficção, assimiladas pelo autor ao longo de sua vida e de sua cisma. Tal desconfiança, ou suspeita, faz a trama ser uma trama muito bem amarrada. Vale atentar o quanto ela é bem urdida.
Aleilton mostra-se como grande articulador dessa trama tão elaborada a partir de facetas lapidadas por sua visão de escritor, visão temperada com as especiarias da observação crítica e, de novo, advindas da experiência de vida, sem deixar de lado alguma dosagem poética. Essa visão conduz o panorama descritivo e analítico do que ocorreu em Belo Monte. Articulação, que entremeia aos relatos mais esclarecidos, as visões e assombrações do sertão, para traduzir a “fragilidade” do homem forte sertanejo. Aqui, uma lembrança de leitura: o empregado do velho Ozébio e seu enorme medo numa noite escura à procura de um bode perdido — por sinal, uma ótima cena!
O texto é capaz de agitar com suas cenas, incluindo o apelo, o clamor a um Euclides, que chega a Canudos com um juízo e uma presunção, observa, conjetura, e muda de conceito. Tocante a maneira como Aleilton Fonseca fez Euclides envolver-se com um canundense e voltar para a capital, saltar de um trem, que um dia levou-o ao sertão, trazendo uma mudança dentro de si — o pêndulo alcançou o outro extremo: eis a patente a ser registrada. A linguagem clara, mesclada de tons jornalísticos e ensaísticos, também sabe ser descritiva, espartana e rigorosa em relação ao teor indutivo e opinativo, como condiz ao jornalista, pois que há certo ajuste quando o narrador sonha entrevistando Euclides da Cunha, levantando questões mais importantes. Um sonho perfeito se comparado a outro momento, quando houve questões caladas, aquelas sequer articuladas ao término da palestra do início do romance.
A carga de regionalismo no contexto narrativo não afugenta leitores e, algum ou alguns registros da norma popular regional estão, no texto, por conta da ratificação que lhe dá sua condição de escritor. Repetindo, a linguagem é clara, escorreita, afeita tão somente aos regionalismos característicos, sempre como indicativos dos costumes típicos da região do sertão. Daí, o duo de realidade e ficção, o misto de jornalista e ficcionista. A notação sobre a linguagem que não se afasta das sendas da norma culta, a não ser quando termos regionais são necessários, vale uma reflexão. Sim, vale atentar para colocações como as da crítica Moema Olival, por serem muito pertinentes aqui: trata-se da utilização da linguagem autóctone. Se, no romance de Aleilton, não há “a transição da fala regional a serviço de uma proposta literária de fundamentação social, fala como índice de cultura de um povo, como fez um Bernardo Élis, mas também não é a fala regional a serviço da reconstrução literária do universo sertanejo, como em Guimarães Rosa”, a conclusão diz que Aleilton utiliza-se da fala que é sua, “de direito e de saber, sem mediá-la ou estilizá-la”, porque ela é a sua linguagem. Isto porque, e mais uma vez, “não se agita uma causa social, como na obra de Bernardo Élis, nem se busca uma filosofia do sertão, como na obra de Guimarães Rosa”.
É preciso dizer ainda sobre “Os fogos da guerra”, parte V do romance, que conta os quatro fogos, sofridos por Canudos, utilizando a voz de um canudense que, assim como seus companheiros, perdeu a vida: “Caí de bruços, ferido de morte. O resto foi silêncio. Aí tudo acabou”. Ponto alto da ficção. Na parte do romance que apresenta um “Auto do Belo Monte”, parte VII, há um julgamento no fórum: há as vozes criadas, todas dentro de suas conformações aos personagens, desde o Dr. Euclides da Cunha, ao jurista, Dr. Rui Barbosa, ao testemunho do Sr. Antônio Conselheiro, ao acusador Senhor Tempo, a República, até a Senhora Circunstância. A realidade da Guerra está exposta com o intuito de promover um desvendamento total, permitindo avaliar de modo correto o que pode se perder com a possível destruição da memória.
Já foi dito sobre um sonho, ou delírio, que foi a entrevista feita pelo narrador ao escritor Euclides da Cunha. Já foi dito sobre um Auto elaborado no corpo do romance, mas há o melhor: o segredo revelado por Ozébio, personagem mais interessante e muito importante ao longo da narrativa. O segredo? Só é revelado aos leitores do livro.
Em suma: a trama esteticamente elaborada, construída na medida em que vai cingindo vários aspectos do sertão e da guerra ocorrida, abraçando o movimento do homem que escreveu sobre o episódio, do ser que se descobriu na periodicidade diligente do pêndulo, recebe o arremate. Em tal ponto da leitura, os leitores envolvidos na cadência pendular e perante a emoção trazida pela revelação, sentem a vibração do pêndulo, ou melhor, do livro. O romance segue crescendo até a frase final; de saída, não poderia ser outra: “O sertão vai virar cidade e a cidade vai virar sertão”.
É realmente uma obra a ser devidamente considerada: é preciso reputar, apreciar e prezar O pêndulo de Euclides. A exclamação ao fechar o livro é: memorável!
Disponível em: http://www.verbo21.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=544&Itemid=174 acessado em 13/10/09
O pêndulo de Euclides
de Aleilton Fonseca
Páginas: 210
O pêndulo dos sertões
Mas Aleilton Fonseca traz uma indagação instigante, colocada na mente inquieta do professor-narrador deste O pêndulo de Euclides. Para discordar de que o conhecimento e a literatura sobre a Guerra de Canudos e seus personagens estejam completos e concluídos, ele se pergunta: “E as vozes do sertão? O que elas têm a dizer?”
Três homens que mal se conhecem, unidos no interesse intelectual e sentimental pela tragédia canudense e na admiração incontida por Euclides da Cunha, partem descontraídos e curiosos para uma curta viagem ao sertão do rio Vaza-Barris, em busca de aventura, divertimento e aprendizado. Um deles encontra a si mesmo.
Creio que Aleilton Fonseca também se encontrou como escritor — com as anotações descritivas, que revelam sua arguta percepção do universo sertanejo; com seus diálogos ensaísticos, que atestam a segurança dissertativa de conceitos e argumentos; e com uma narrativa engenhosa, que encontra vazão no prumo da arte ficcional.
Acima de tudo, Aleilton Fonseca acerta em cheio. Na dicção literária, pelo domínio da linguagem: ritmo, expressão e composição; do erudito ao popular; do reflexivo ao emotivo; do discursivo ao lírico. E no campo retórico, pela clareza de ideias, pela congruência entre valores e conteúdos, pela pertinência dos sentidos e motivações.
Este livro vem preencher uma lacuna. A Guerra de Canudos continua. A luta do sertão ainda sangra. O sertanejo ainda é um forte. Nada está encerrado e pacificado. A escritura da guerra não está completa. Não sem antes ouvirmos o que tem a dizer Aleilton Fonseca. Não sem pararmos para escutar a voz que vem dos sertões."
-Luís Antonio Cajazeira Ramos, poeta-
Na celebração do centenário de morte de Euclides da Cunha, Aleilton Fonseca homenageia o grande autor de Os sertões. Com a região nordestina da Guerra de Canudos como cenário, O pêndulo de Euclides apresenta um debate inteligente e instigante sobre um dos mais sangrentos conflitos brasileiros. Tudo retratado, de maneira leve e encadeada, pela visão de um professor baiano, um viajante francês e um poeta.
Mas o que há em comum entre esses personagens? Aparentemente nada. Entretanto, a cada página do romance, a relação entre eles fica mais nítida para o leitor: há todo um clima de encanto e curiosidade pela Guerra de Canudos e tudo que a cerca.
No ano de 2003, um professor baiano apaixonado pelo livro Os sertões, de Euclides da Cunha, decide conhecer a famosa região de Canudos (Belo Monte, segundo os conselheiristas) a fim de escrever seu próprio livro. Em sua jornada, ele terá a companhia do francês Dominique e do poeta Alex. Juntos, 106 anos após a quarta batalha entre sertanejos e soldados republicanos, e o extermínio dos seguidores de Antonio Conselheiro, eles partem para uma viagem no tempo.
Ao chegar à cidade atual de Canudos, o primeiro sentimento é de espanto cultural. O comércio é informal, as pessoas são extremamente simples e amistosas, e tudo gira em torno do mito de Antonio Conselheiro. Com o passar dos dias, o doutor começa a encantar-se com as informações que recebe dos sertanejos, principalmente as conseguidas nos bate-papos com seu Ozébio, de 80 anos, um conhecedor misterioso e profundo de todos os detalhes do conflito.
Com uma narrativa surpreendente, ao reproduzir passagens de Os sertões em seus diálogos, O pêndulo de Euclides provoca uma reflexão sobre o que realmente aconteceu no sertão nordestino no fim do século 19. Uma aula sobre as pessoas que lutaram e o cotidiano de suas vidas sob a tutela de Antônio Conselheiro.
O pêndulo de Euclides será lançado também no Seminário Internacional 100 anos sem Euclides, em Cantagalo, no dia 27 de setembro, às 9h30min, no auditório principal do Hotel Pesqueiro da Aldeia. O evento é aberto ao público.
Disponível em: http://www.projetoeuclides.iltc.br/index.php?page=conteudo&conteudo=impre_noticias&id=139 acessado em 13/10/09
O Pêndulo de Euclides
No centenário de sua morte, Euclides da Cunha ganha os olhares atentos de muitos. Na Bahia, o professor e escritor Aleilton Fonseca lançará o romance O Pêndulo de Euclides, editado pela Bertrand, do Rio de Janeiro. O romance centra-se sobre a Guerra de Canudos e o livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. O livro será lançado na Academia de Letras da Bahia neste mês de setembro.
Dois fragmentos de O Pêndulo de Euclides
Do romance, destaco dois trechos em protagonistas discutem o valor dos cordéis encontrados dentre os espólios da guerra pelos soldados:
1 - “O mais pobre dos saques que registra a história”
“ – Euclides afirma que após a guerra os soldados fizeram uma devassa nas casas em ruínas, curiosos, em busca dos despojos. Fizeram o que ele chamou de “o mais pobre dos saques que registra a história”. Encontraram imagens mutiladas, rosários de cocos e os “desgraçados versos”. São mesmo “pobres versos muito malfeitos”, que nem de longe representam a qualidade poética de cordel do sertão.”
2 – “A luta necessária ...” e o “erro histórico”
A propósito de uma visão negativa de Euclides da Cunha do ideário sertanejo, como as idéias contrárias à República, “resultantes do atraso cultural, da ignorância da população sertaneja”, o protagonista Alex dá uma nova interpretação:
“- Paradoxalmente, a visão negativa de Euclides sobre os sertanejos joga a favor de Canudos. Eles não tinham formação e informação para entender as ideias republicanas. Portanto, não eram inimigos da República, mas sim seus credores em termos de ensino e assistência. Por isso, Euclides conclui que os sertanejos requeriam outra reação do governo. Ou seja, a luta necessária não seria aquela da forma militar e dos canhões, mas sim através da educação, das letras, das luzes, do progresso e da cidadania. A partir disso, Euclides interpreta a intervenção militar como um erro histórico, como um crime da nacionalidade contra patrícios, de que seu livro se torna uma grande e ruidosa denúncia.”
“A luta necessária ...” e outros “erros históricos” ?
A narrativa bíblica começa com um Paraíso, um Jardim do Édem, e termina numa mega tragédia, num Apocalipse. Há quem diga que a imagem do paraíso terrestre e seu Jardim do Édem se situaria na babilônia. Concretamente, lá é que foram construídos os Jardins Suspensos da Babilônia, uma das maravilhas do Mundo Antigo. E em toda intervenção militar, ainda para ficarmos na Babilônia de hoje, para muitos o apocalipse é real.
Curiosamente, essa passagem sobre Canudos insiste em trazer à lembrança à Guerra do Iraque, apenas para fazer referência, não ao apocalipse de muitos milhares de iraquianos e suas famílias, mas para fazer referência ao Jardim do Édem que poderia ser aquela rica região, berço das mais antigas civilizações humanas. No caso do Iraque, é possível pensar que a intervenção militar também foi um erro histórico e que a intervenção poderia ser de outra natureza?
Escrito por Agenor Gasparetto
Disponível em: http://agenorgasparetto.zip.net/arch2009-08-30_2009-09-05.html acessado em 13/10/09
terça-feira, 6 de outubro de 2009
O sabor das nuvens - Aleilton Fonseca
Era uma enorme casa. O ruído dos geradores era o aviso, o coração da fábrica pulsava: distraía-nos como um motor de nave em vôo, zumbindo nos ouvidos curiosos. Mas, o portão! Sempre fechado aos estranhos – estranho, eu?! –, a guarita e seu morador solitário, escutando aquelas notícias. Seu mundo saía do rádio e ali mesmo se esvaía. E as letras vermelhas, iradas, gritavam: ENTRADA PROIBIDA
Agora, não: eu ia vencendo portão adentro, de repente escancarado; nem portão que era, mas a entrada que me chamava sem impor condições:
– Ei, o senhor está procurando alguma coisa? - um menino me atalhou.
– Biscoitos! – respondi, sem deixar escapar-me o fio de meu próprio tempo.
– No meio do mato? - ele insistiu.
– Não, no meio da fábrica.
– ?!
– Huummm. Esse cheiro! - murmurei, sentindo-me orvalhar nos lábios.
– Cheiro de mato e insetos - ele pontuou-se no real.
– Não, biscoitos quentinhos.
– ?!
– Veja a fumaça da chaminé.
O menino olhou para as nuvens, que se iam altas e ensolaradas, me encarou e, distanciando-se um pouco, me observava de um certo soslaio, bem que desconfiava de mim. Eu estava um doido? Ambos fizemos pausas, entrecortadas de olhares esconsos. E, nesse diálogo, já de somente olhar, nos tangenciávamos, nos recortes do tempo. Cada qual seus quais, com suas estampas, em que a vida pode ser revisitada.
Era um menino e sua bicicleta, nas rodas de seu presente. Eu, então... Ele encostou o brinquedo numa estaca sobrevivente, entrou na fábrica saltando por sobre um resto de parede. E me disse que seu avô trabalhara ali antigamente. Ao se aproximar, ele afastou as ramagens tenras, por entre as touceiras de mato. Colheu um melão-de-são-caetano e o apertou entre os dedos, as partes se abrindo em estrela, expondo as carnes vivas e sementes do fruto silvestre. Era bonito, desde menino eu achava: pena que não se prestava a melhor degustação, só servia para alimentar o sonho. Aquele fruto viera do passado, entrando portão adentro para tomar conta de tudo. Eram as ramagens da mão do tempo.
– Olhe isso!
O menino tocou o pé na parede e me disse que estava tudo podre. O telhado viera abaixo, os cupins devoraram as madeiras. Eu ouvia o relato, mas não acompanhava seus olhos. Ouvia mesmo era a engrenagem trabalhando. As máquinas que nunca vi, apenas as imaginara, pelo som do trabalho que os cobogós me avisavam. Dois tijolos saltaram, quebrando-se sobre o capim rasteiro que assoalhava o lugar. Eram dois tijolos que se esmigalhavam, mas eu os revia intactos, na parede firme, na cor do óxido de terra, sempre novos.
O menino montou de um salto, saiu cavalgando a bicicleta, ia-se equilibrado. Segui atrás, sem saber ao certo por que o acompanhava. Lá adiante, vi quando ele entrou num terreiro, a casa simples mais ao fundo. Continuei caminhando, até me acercar da grade baixa do portão. Na frente da casa compunham-se pequenos canteiros de flores, acenavam-me ali nessa busca as rosas e seus espinhos. Havia uma aroeira jovem, sob a qual um banco de madeira convidava à sombra:
– Ô de casa! – me arrisquei a novo rumo.
Um homem de boa idade assomou à porta, logo me averiguava as feições, certamente para ver se me conhecia de outro tempo ou lugar. Ele veio ao meu encontro. Senti o seu esforço a esmo: não, ele não me conhecia. Eu desatei a cena:
– Boa-tarde. O senhor é seu...?
– Ivo, eu mesmo. Boa tarde. É alguma coisa? – ele respondeu e perguntou, reticente.
– Nada. Ia passando, seu neto me disse que o senhor trabalhou na antiga fábrica, então...
– Ah, sim, trabalhei, né? Mas isso faz muitos anos, pra lá de uns trinta! – ele informou, enquanto apontava o banco de madeira, num convite.
– É, faz tempo! - comentei, enquanto nos sentávamos à sombra.
– O senhor veja: o tempo passa, leva tudo. Leva a gente também - ele filosofou, buscando apoio nas nuvens.
– O senhor se importaria de me falar um pouco daquele tempo, da fábrica, como era antigamente?
A primeira frase de sua resposta foi um gesto silencioso, de quase em quase, desde seus olhos para os meus. Depois seu olhar fugiu para os galhos da aroeira que nos assistia. Esse seu Ivo, avô do menino, estava já encabulado. Eu lhe trazia aquele assunto morto, num repente voltando à luz da tarde. Ele estava surpreso. Depois de se cultivar absorto, num quase sorriso, ele murmurou, com jeito de certa tristeza:
– Ah, não sei lhe contar, não. Não sei de lá, nada.
– Mas, e o serviço, lá dentro? – eu quis insistir.
– Lá dentro, não lembro.
– Mas se o senhor trabalhou lá?!
– Mas eu só trabalhava fora.
– Ah – murmurei, desapontado.
– Quem é o senhor? – ele reverteu a entrevista, mas já eu desanimara.
Fiquei de pé, olhei a aroeira tranqüila, ele também se levantou. O menino vinha de volta, os olhos acesos em nossa direção.
– Contou a ele, vô? – disse, com o ar orgulhoso.
– O quê?
– Que o senhor era vigia da fábrica?
Para mim, esta revelação do menino, diante da fala vazia do seu avô. Meio a contragosto, o velho esfregou as mãos, com os dedos entrelaçados, e confirmou:
– Eu era só mesmo vigia.
Os três ficamos calados. Eu reconhecia naquele homem a função que nos impedia de alimentar a curiosidade, de nos arriscar à prova de alguns biscoitos. Ele ficava de guarda na guarita para que os meninos vadios não entrassem. No seu sem jeito, ele confessava isso, meio que pesaroso, até mesmo descontente. Restava-nos aquele silêncio em branco.
Então eu cumprimentei o velho com um gesto e disse “até logo”. Aquilo era mesmo um adeus. Ele, cabisbaixo, nem respondeu. Segui pelo caminho de barro, sem ânimo sequer de olhar para trás. De repente, ouvi que o menino me seguia, em meu rumo direto de volta à fábrica. Meus olhos ainda iam cheios das imagens que aquele avô não pudera me contar. Toda a fábrica para ele resumia-se à mínima guarita, o tamanho exato de sua história. Eu me senti pleno, tinha a fábrica inteira dentro de meus olhos. E agora ia seguindo, o menino guiando, sem palavras quais que fossem.
– Essa fábrica foi importante aqui, o senhor sabe? – ele se esforçava para preencher a página que o seu avô rasgara sem querer.
Eu fui seguindo pelo acostamento da pista recém-asfaltada, enquanto o menino me acompanhava, pedalando devagar. Aproximei-me do velho prédio e agora eu via de fato as ramagens que invadiam os restos das paredes, entrando e saindo pelos cobogós sobreviventes.
De novo, entrei pelo vão aberto das ruínas da guarita onde ficava o vigia: era a boca do tempo que tudo engolira. E percorri aquele mapa da fábrica, um debucho antigo perdido nas memórias envelhecidas de uns e sepultadas de outros. Eu rabiscava as imagens, preenchendo-me de todos os talvezes. Riscava por onde fosse que ficava cada máquina, onde era o forno, onde se empacotava, tudo agora um ex-existir das coisas e dos gestos. Os operários de novo a postos, suas vozes e passos abafados pela vibração das máquinas. Quantas vezes eu sonhara ser um deles! Dentro de mim a massa ia engrossando, os biscoitos tomando forma e daí ao forno, saindo de lá quentinhos para os pacotes e para as latas.
Eu não podia me perder daquele cheiro. Eu precisava me repor no saber experiente que a vida desbota e destrata, nas rimas certas do texto, a súmula do sim e do nada, as respostas que a gente colhe como frutos de safra no pomar. Estou aqui, mas cheguei tarde, contudo em data aprazada: em vez de massa, preparo um outro tipo de fermento.
O relógio sumiu de minha rota, eu me vi num ponto suspenso, as reticências entre duas vírgulas absortas, antes de assinar aquela sentença. Eu tinha de reconhecer: três gerações, o avô, eu e o menino vivíamos cada um sua própria alegoria, cada qual a mais plausível e incerta. Em cada um de nós havia uma fábrica diferente brotando de dentro do mato, que invadia os nossos olhos e os nossos dias. Dos três sobreviventes do sonho, apenas eu tinha pena e papel; e sabia sentir as cores, o gosto e o sabor das nuvens.
Tudo sobrevive nos sulcos que as letras escavam sobre o mudo pergaminho. Debaixo dos riscos, sobrevivem as demais escritas.
Eis a fábrica. Entrei de novo, sem licença. Eu andava a esmo, pelo meio do salão de trabalho, tropeçando nos matos rasteiros. Eu só queria repor as peças em seus lugares, ligar as máquinas, aquecer o forno e despertar a chaminé. O menino de novo me observava, talvez curioso ante minha empreitada. Eu perscrutava-lhe uma pergunta que ele não alcançou formular. Eu, também funcionário, em certo depois, minha função era a última de todas. Enfim, eu agora a exercia. Ouvi que a fábrica apitava e me senti arrepiar inteiro. Estava findo esse turno de trabalho. Então eu fui saindo.
– Esta fábrica está morta.
O menino disse isto e retomou sua bicicleta. Deu uma última olhada, foi-se a guiar para longe, fazendo girar o tempo presente. Era já o cair da tarde; e dentro de mim o apito da fábrica chorava. Eu via de novo a fumaça formando nuvens e provava o cheiro morno dos biscoitos. Continuei caminhando, sem olhar para trás, os matos já não me incomodavam. Era hora, e eu ia saindo pelo mesmo portão aberto, por onde as minhas lágrimas passavam.
(Do livro O Desterro dos Mortos (Relume Dumará), 2001)
Disponivel em: http://contosbrasileiros.blogspot.com/ acessado em 06/10/09