terça-feira, 13 de outubro de 2009

Dueto de realidade e ficção

setembro de 2009

Por Gerana Damulakis

A verdade verdadeira é sempre inverossímil, você sabia? Para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira.

Stiepan Trofímovitch, em Os demônios, de Dostoiévski

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O romance O pêndulo de Euclides (Bertrand Brasil, 2009), de Aleilton Fonseca, é, antes de tudo que há para dizer, emocionante. Três intelectuais, após a última palestra sobre a Guerra de Canudos, viajam rumo ao sertão. Um deles é o narrador principal, é aquele que segue viagem, não apenas para ver in loco o rincão da guerra, mas em busca da solução para uma cisma, que traz dentro de si.

As páginas de Aleilton Fonseca estão impregnadas de uma admiração pela matéria histórica, que exala da alma de escritor, como a aura dos iluminados — Um iluminado ali congregou toda uma população (E. da Cunha) —, e, assim, a eleição da matéria é o próprio humo, a terra vegetal fértil, do qual brotou o romance.

O título sugere que, se há um pêndulo, forçosamente haverá um movimento determinado: o movimento pendular traça uma trajetória, que parte de um extremo e alcança seu oposto. Usando a nossa intuição, presumimos que algo mudará no decorrer do romance. Como? Fazendo os leitores palmilharem, — metaforicamente, percorrendo a pé, como se no sertão estivessem —, os confins entre a realidade do sertão e a verdade ficcional com seus mitos.

Se não esquecermos que a fantasia de todo escritor é sua visão do mundo, ou seja, o motor que o desperta e o norteia, então, os emblemas que para ele oferecem os entes e os agentes, sem dúvida, são o que Aleilton cria e alça como uma voz que resgata, num plano que é sede da atenção, tanto na história, quanto na literatura.

Impressiona o vigor do empenho e do comprometimento pessoal da voz narradora — claramente, a do próprio autor —, manifestando entendimentos que não são decorrentes de investigações e análises desordenadas e estouvadas, ou mesmo, apenas ocasionais, mas, sim, de toda uma existência, somando, aos conhecimentos lembrados e anotados, minúcias que engrandecem a ficção, assimiladas pelo autor ao longo de sua vida e de sua cisma. Tal desconfiança, ou suspeita, faz a trama ser uma trama muito bem amarrada. Vale atentar o quanto ela é bem urdida.

Aleilton mostra-se como grande articulador dessa trama tão elaborada a partir de facetas lapidadas por sua visão de escritor, visão temperada com as especiarias da observação crítica e, de novo, advindas da experiência de vida, sem deixar de lado alguma dosagem poética. Essa visão conduz o panorama descritivo e analítico do que ocorreu em Belo Monte. Articulação, que entremeia aos relatos mais esclarecidos, as visões e assombrações do sertão, para traduzir a “fragilidade” do homem forte sertanejo. Aqui, uma lembrança de leitura: o empregado do velho Ozébio e seu enorme medo numa noite escura à procura de um bode perdido — por sinal, uma ótima cena!

O texto é capaz de agitar com suas cenas, incluindo o apelo, o clamor a um Euclides, que chega a Canudos com um juízo e uma presunção, observa, conjetura, e muda de conceito. Tocante a maneira como Aleilton Fonseca fez Euclides envolver-se com um canundense e voltar para a capital, saltar de um trem, que um dia levou-o ao sertão, trazendo uma mudança dentro de si — o pêndulo alcançou o outro extremo: eis a patente a ser registrada. A linguagem clara, mesclada de tons jornalísticos e ensaísticos, também sabe ser descritiva, espartana e rigorosa em relação ao teor indutivo e opinativo, como condiz ao jornalista, pois que há certo ajuste quando o narrador sonha entrevistando Euclides da Cunha, levantando questões mais importantes. Um sonho perfeito se comparado a outro momento, quando houve questões caladas, aquelas sequer articuladas ao término da palestra do início do romance.

A carga de regionalismo no contexto narrativo não afugenta leitores e, algum ou alguns registros da norma popular regional estão, no texto, por conta da ratificação que lhe dá sua condição de escritor. Repetindo, a linguagem é clara, escorreita, afeita tão somente aos regionalismos característicos, sempre como indicativos dos costumes típicos da região do sertão. Daí, o duo de realidade e ficção, o misto de jornalista e ficcionista. A notação sobre a linguagem que não se afasta das sendas da norma culta, a não ser quando termos regionais são necessários, vale uma reflexão. Sim, vale atentar para colocações como as da crítica Moema Olival, por serem muito pertinentes aqui: trata-se da utilização da linguagem autóctone. Se, no romance de Aleilton, não há “a transição da fala regional a serviço de uma proposta literária de fundamentação social, fala como índice de cultura de um povo, como fez um Bernardo Élis, mas também não é a fala regional a serviço da reconstrução literária do universo sertanejo, como em Guimarães Rosa”, a conclusão diz que Aleilton utiliza-se da fala que é sua, “de direito e de saber, sem mediá-la ou estilizá-la”, porque ela é a sua linguagem. Isto porque, e mais uma vez, “não se agita uma causa social, como na obra de Bernardo Élis, nem se busca uma filosofia do sertão, como na obra de Guimarães Rosa”.

É preciso dizer ainda sobre “Os fogos da guerra”, parte V do romance, que conta os quatro fogos, sofridos por Canudos, utilizando a voz de um canudense que, assim como seus companheiros, perdeu a vida: “Caí de bruços, ferido de morte. O resto foi silêncio. Aí tudo acabou”. Ponto alto da ficção. Na parte do romance que apresenta um “Auto do Belo Monte”, parte VII, há um julgamento no fórum: há as vozes criadas, todas dentro de suas conformações aos personagens, desde o Dr. Euclides da Cunha, ao jurista, Dr. Rui Barbosa, ao testemunho do Sr. Antônio Conselheiro, ao acusador Senhor Tempo, a República, até a Senhora Circunstância. A realidade da Guerra está exposta com o intuito de promover um desvendamento total, permitindo avaliar de modo correto o que pode se perder com a possível destruição da memória.

Já foi dito sobre um sonho, ou delírio, que foi a entrevista feita pelo narrador ao escritor Euclides da Cunha. Já foi dito sobre um Auto elaborado no corpo do romance, mas há o melhor: o segredo revelado por Ozébio, personagem mais interessante e muito importante ao longo da narrativa. O segredo? Só é revelado aos leitores do livro.

Em suma: a trama esteticamente elaborada, construída na medida em que vai cingindo vários aspectos do sertão e da guerra ocorrida, abraçando o movimento do homem que escreveu sobre o episódio, do ser que se descobriu na periodicidade diligente do pêndulo, recebe o arremate. Em tal ponto da leitura, os leitores envolvidos na cadência pendular e perante a emoção trazida pela revelação, sentem a vibração do pêndulo, ou melhor, do livro. O romance segue crescendo até a frase final; de saída, não poderia ser outra: “O sertão vai virar cidade e a cidade vai virar sertão”.

É realmente uma obra a ser devidamente considerada: é preciso reputar, apreciar e prezar O pêndulo de Euclides. A exclamação ao fechar o livro é: memorável!


Disponível em: http://www.verbo21.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=544&Itemid=174 acessado em 13/10/09

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