sexta-feira, 14 de maio de 2010

O VOO DOS ANJOS - Aleilton Fonseca


ÍAMOS PELA AVENIDA AFORA, CONDUZÍAMOS O ANDOR DEVOTO. Havia mais mulheres que homens, mais meninas que meninos, nessa procissão leiga, oficiada por conta e risco particulares. A santa deixava o nicho de sua sala especial que tínhamos em casa, alçava-se ao andor de madeira, até que leve, enfeitado de papel crepom, todo em rosa, azul e branco. O cortejo avançava até o final de nosso quarteirão e voltava pela outra rua, mais afastada e sem calçamento, em suas feições interioranas. Prosseguíamos, nesse compasso, parando o quase nenhum trânsito que porventura houvesse.
Era assim todo ano, por juras e empenhos, até que eu completasse treze aniversários. Por que não doze? Melhor se fossem os onze! — e desde antes se desse por encerrada a última peregrinação. Nos primeiros anos, eu mal sabia desses tratos de minha mãe com a divina. E ainda menos que tais ofícios eram por minha irrestrita causa. No começo, eu ia bem que entonado de vestido azul de seda, no colo materno, as asas brancas pendendo de minhas costas, num treino de voo futuro.
Ora, mas... é que fui crescendo. Primeiro, apeado do colo, fui promovido a anjo pedestre. Acompanhava o séquito, a cada ano mais encabulado, e daí, a mais por menos, já em gritante estado de vergonha. Um anjo quase rebelde à frente do andor. A santa até me assemelhava um quanto tristinha por minha causa.
Desde que me achei em tenência dessa parte, já de ensaios e quereres de minha mãe, aprendi os benditos que se cantavam. Ela, me olhando firme, me recomendava por ordem da santa. Eu os entoava, junto com o vozerio das mulheres, de bom grado, desde logo em decrescente, indo em andante com as asas pendentes, doido para me voar dali para onde fosse.
Eu benditoava num esforço de nem abrir a boca, desejando que o périplo se encurtasse de um zás!, por um milagre. Pois se eu sentia os risos de mofa da meninada, ao lado, acompanhando ao largo a promissória que minha mãe resgatava!? Daí eram uns tempos de zombaria que me encaravam: diziam que a saia de anjo me caía bem, balançavam as mãos juntas para me arremedar as asas. E eram umas asas de papelão coberto de papel crepom repicado a tesoura, com as pontas arrebitadas a modo de penas angelicais. Essa tamanha pena, eu podia?
Quê! Dessa vez bem que pedi substituto: “Mãe, já tou grande pra isso!” Ela fez foi ralhar comigo, em quase que ofendida, benzendo-se diante da santa, contra a minha apostasia. Não! Havia de ser eu, sim, oh ingrato! Era a ultimíssima vez! Não fosse a promessa, eu nem tinha vindo ao mundo para ser o único filho de uma já viúva.
Explico-lhes, de breve para colcheia, em segunda voz, pelas notas e pausas por ela mesma postas nesta partitura. Depois de duas perdas, ela teve a má sorte de se ver viúva quando tentava levar a êxito a terceira vez. E eu era o principal interessado. O meu pai, que nunca o vi em vida, este falecera num acidente pouco explicado. Isso já nem nos toca ao caso agora. Para encurtar caminhos e entrelinhas: minha mãe, já de vez sozinha, tinha na gravidez de risco a única esperança de tirar um fruto de uma vida até então em nada de alegrias. Dava-lhe medo que mais esse fruto pecasse.
Dona Dalva, o filho perigando em dificíl gestação, prostrou-se aos pés da santa, em prantos correntes, ofertando-o por afilhado, em proteção de sua esperança. Assim, o ajuste, de ambas as partes, e Deus por testemunha e juiz. Nascesse eu com vida, completasse um ano de choros e fraldas, iríamos nós nessa romaria de ano a ano, por treze vezes se resumindo. Esse era o trato, ad diem.
É óbvio que, criar, me criei! Mas aquelas andanças de anjo sobre a terra, naquelas tardes e noites de maio, mês de Maria, tais e quais, eu me lembro delas, nessa comichão de lhes contar o invento de quantos pontos. Sigam-me nesse passo, veremos de onde a procissão retorna.
Negociei que ela me arrumasse companhia, eu já pelos treze anos, mais dado aos babas de futebol de rua, às caças aos passarinhos e aos castigos escolares, me sentia nas reticências do ridículo, transvestido de anjo, logo eu! E um quê de anjo, como mamãe o concebia, eu tinha mesmo o nenhum! Eu me descriancei desde muito cedo, nas aprendizagens, nos papos furtivos com os meninos maiores e nos brinquedos com as meninas vizinhas. A gente ia sabendo, de outiva, de sutis observações, ensinos e práticas, como as diferenças se combinavam. Tudo em brincadeiras sãs, embora nunca menos escondidas que vigiadas pelos zelosos adultos equidistantes.
Nos entretantos dessa última prestação, era preciso prover motivos de eu não entornar o andor. Então minha mãe me arrumou um anjo de companhia — e eu até cogito que esse anjo se ofereceu para a empreitada comigo. Uma menina das mais levadas, tão mais que linda!, muito sabida em nossas primeiras desinocências. Um trisco menos nova que eu, minha alegria escondida de todos, invasora consentida de meus intentos de adolescer.
Ao lado dessa ângela de madeixas, esqueci das mofas — que, se antes me feriam amiúde, agora evaporavam pelo caminho. Os moleques declinavam de mim e se conjugavam nela, cobiçosos sem o saberem. Eu azul, ela rosa: nossas asas até se tocavam nas pontas, nossos olhos sorriam-se a piscar, inventando brincadeiras. Era uma ângela mais que a santa! — Oh, amada, por onde andas agora, há quanto tempo depois de tudo?
Mas a mãe da menina, de si em si quase desconfiada, ficava de olho em nossas asas, perdendo às vezes o ritmo do bendito, pesponteando-o à frente, no embalo do refrão que se repetia. De vez em vez, ela nos tirava uma mira, tentando adivinhar os ângulos de nossos passos. Ah, que anjos que éramos, os dois numa alegria inexplicável, difícil de se alcançar quando a inocência se desgasta. No enlevo de nem saber o que se passava em nossas veias angelicais, um calor ia-nos tomando, uma vontade louca de nos tocarmos, de nos sentirmos os cheiros, ficarmos por conta de um nada. Estávamos entre o céu e a terra, com olhares lânguidos, de um para o outro.
De mãos postas, em posição devocional, não conseguimos prosseguir. Eu me acerquei de minha ângela e lhe ofereci o calor de minha mão, que suava. Ela tocou-me com um sorriso que me elevou às nuvens, meu coração perdeu o compasso do canto e o ritmo do caminhar, como um tambor desafinado. Continuamos, agora de mãos dadas, sob o olhar impassível da santa em seu andor, que se arrojava à nossa retaguarda.
Minha mãe, se notou alguma coisa, fingiu que não. Até desistiu de ficar me admirando com olhos devedores à santa (uf!). Ela descansasse, que estava tudo pago, e com sobras, isso estava. E eu não morria mais, jurava em mim que não.
Era esse crescendo e caminhando, todo ano no mesmo cair da tarde. Promessa é dívida. A gente se saldava no trato. Eu, no entanto, tinha agora um maior regozijo que valia por todas as peregrinações passadas. Eu queria que o caminho se multiplicasse e que ninguém nos aparasse as asas, nos deixassem flutuar azul e rosa nos sorrisos em que nos doávamos.
Eis que chegávamos ao fim da caminhada. Quando o cortejo se aproximava de casa, escapamos de vez daquela devoção. E nos completamos num abracíssimo demais das medidas. Um verão enorme nos vinha à pele e nos deixava suados, revelando-nos as mais íntimas fontes. E isso era justo enquanto todos se preocupavam em disputar as portas, buscando acomodação diante do nicho da santa, para a celebração da ladainha final.
Havia o lugar certo para os anjos. Mas ali não chegamos. Numa combinação de olhares, dirigimo-nos para o quintal, ao fundo da casa, acolhidos pela moita de quarana.
Anjos, os nossos olhos se entendiam. Decifrávamos segredos a sete chaves ocultos, em busca de aprendermos o prazer de voar. Os nossos lábios se ensinavam, com o ardor que o coração palpitava. Nossas mãos consagravam os corpos tenros, que se buscavam num voo cada vez mais alto. Assim, descobríamos que os anjos também se amam, em carne e alma, sem precisar de palavras.

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