O surgimento da literatura moderna é intrínseco às movimentações das grandes cidades que cresciam vertiginosamente, em meio ao caos e à crise de valores, entre o final do século XIX e o início do século XX. O processo acelerado de urbanização, a adequação do espaço público ao ritmo da vida cotidiana e o intenso fluxo de pessoas constam de seu contínuo vir a ser. A busca de uma nova linguagem literária para expressar essas transformações se constitui num objetivo fundamental dos poetas e ficcionistas para garantir a sobrevivência e a inserção da literatura na nova realidade das metrópoles.
Para o poeta moderno, os diversos matizes das cidades trazem consequências em relação à forma de observar e exprimir a realidade de sua experiência cotidiana. A cidade passa a ser vista como um lugar sempre estranho, em ininterrupta mutação. E na multidão de homens desconhecidos e apressados que se acotovelam na engrenagem, o poeta é também um rosto estranho. O seu canto não encontra eco imediato. Imerso na teia urbana, concretização física da consciência moderna, ele reage como artista e como ser humano através do discurso de sua poesia. Da observação das ruas e avenidas extensas e perigosas, das torres de pedra, cimento e ferro é preciso extrair um sentido poético novo e expressá-lo em linguagem moderna, positiva ou negativamente. Sobre as formas da cidade tentacular, o poeta projeta o seu ideal e vislumbra a silhueta da futura urbe, em que a vida e a poesia possam se reconciliar, em nome da humanidade. Enquanto isso não é possível, a cidade se agita diante de seus olhos e do seu canto, levanta-se como esfinge e repõe o expressivo desafio mítico: decifra-me ou te devoro.
A poesia da modernidade, na abertura de suas trilhas iniciais, evolui em duas direções principais, muitas vezes de maneira ambígua, contraditória, dialética. Geralmente, os poemas traduzem as imagens do desencanto ou do encanto em relação ao progresso, com a recusa ou a incorporação das massas que constituíam a cidade em constante movimentação. Na base desse ponto de vista, está uma atitude de estranhamento, seja de forma encantada, seja de forma desencantada. O desafio que se apresenta é que o mundo mudara e a poesia precisava mudar para torná-lo linguagem, daí a necessidade de se estabelecerem novas formas de correspondências entre os objetos do mundo e sua tradução em imagens poéticas.
Assim, o discurso poético flui diante do estranho mundo que se apresenta ao olhar sensível e que é preciso incorporar a um discurso de aceitação e/ou de recusa. O encanto e o desencanto em relação ao progresso material da sociedade humana atualizam-se na técnica, na linguagem e na focalização, como formas de recusa e/ou incorporação seletiva dos seus temas e valores. O grande ator desse espaço são as massas, no seio da qual o poeta circula como simples mortal, observador e participante atento. Diante da massa fourmillante (formigante) que avança em todas as direções, demolindo ruas e edificações antigas que lhe impeçam o caminho e, em seu lugar, abrindo avenidas e construindo edifícios, submetendo os trajetos dos passantes à lógica dos veículos a motor, o poeta precisa tomar posição, diante de um mundo que é preciso incorporar ou recusar como objeto válido para a consideração da poesia.
O angloamericano T. S. Eliot é o poeta que assume uma atitude de distanciamento, abandona o presente e volta-se para as fontes das tradições do passado, recusando as massas que ele considera multidões urbanas irredimidas, como exemplo de degenerescência e esterilidade. O pessimismo de T.S. Eliot está presente de forma enfática nos poemas “The waste land” (1922) e “The hollow men” (1925), em que o mundo na era da modernidade é visto como uma espécie de “terra arrasada”, habitada por “homens ocos.” O poeta brasileiro Augusto dos Anjos já havia plasmado, a seu modo, a imagem da decadência humana na metrópole, no longo poema “Os doentes” (1912). Já Fernando Pessoa mantém com a cidade moderna uma relação de amor e ódio, traduzindo as múltiplas possibilidades de vivenciá-la através de um coro de vozes líricas que constituem os seus diferentes heterônimos. O russo Vladímir Maiakovski entrega-se a ação revolucionária e compõe a nova poesia inserida no processo de construção da sociedade socialista. De outro modo, o norte-americano Hart Crane também mergulha no presente da cidade com entusiasmo, em seu livro White Buildings, de 1926. Paradoxalmente, ambos os poetas cometem suicídio, renegando as possibilidades de uma existência satisfatória no mundo moderno, tanto nos termos do socialismo russo, no caso de Maiakovski, como no cenário do capitalismo norte-americano, no caso de Hart Crane.
Evidentemente, as duas posições fundamentais assumidas pelos poetas, de aceitação e de recusa, não são estanques no discurso poético moderno. Na verdade as perspectivas de abordagem são dinâmicas, pois a poesia move-se dialeticamente em situações nas quais freqüentemente se contrapõem visões positivas de determinados aspectos e negativas de outros. O poeta estende sobre a vida da cidade moderna um olhar dialético capaz de transubstanciar em seu texto os feixes de contradições que regem sua lógica cotidiana e as relações entre os indivíduos. Dessa maneira, a poesia da cidade muitas vezes exibe um estado de permanente tensão ao tematizar os valores urbanos e seus diferentes aspectos. Os discursos poéticos geralmente transitam entre os dois extremos, de forma dinâmica, pendendo dialeticamente entre a aceitação e a recusa dos valores modernos. Portanto, momentos de crença e de descrença nesses valores se alternam, pessimismo, ironia e entusiasmo dividem espaços ou se chocam nos diversos textos que exprimem a cidade em processo. Diante desses procedimentos, observa-se que o poeta moderno aproxima-se e distancia-se metaforicamente da cidade, num movimento de constante recusa e retorno, em tom irônico e afetivo. O poeta está consciente de seu irrecusável estatuto de artista da vida urbana, embora sentindo um mal-estar sem cura. Angústia e esperança, utopia e realidade, constituem forças motivadoras que ele maneja nesse espaço possível da sua experiência de vida e de sua sobrevivência como indivíduo e como artista.
Desse modo, o discurso da poesia incorpora as relações contraditórias e problemáticas do poeta no mundo, fixando imagens que traduzem a negação/ afirmação dos valores e das circunstâncias de vida que a cidade oferece, ao lado das indagações acerca do próprio fazer poético diante dos desafios da estética da modernidade. Estes elementos consubstanciam o ponto de vista do poeta, a partir do qual se desenvolvem as posições de aceitação, recusa, questionamento, problematização, análise e reflexão, em discursos marcados pelo jogo de tensões e contradições inerentes ao universo poético da cidade moderna. O poeta não integra o epicentro da transformação material do mundo, uma engrenagem que o dispensa. Sua posição é de deslocamento, a partir da qual constrói um discurso crítico de recusa e resistência, como observador e experienciador da vida que a modernidade lhe impõe.
Estas questões também se relacionam com a poesia moderna brasileira. A vida literária brasileira não ficou infensa à grande movimentação das vanguardas europeias, no momento em que se plasmava a nova poética das metrópoles. Ao lado disso, também as principais cidades passavam por um acelerado processo de urbanização, na esteira das transformações urbanas experimentadas pelas metrópoles europeias. Com o atraso de algumas décadas, mas igualmente vivenciando experiências semelhantes no urbanismo, cidades como São Paulo e Rio de Janeiro se constituíam também como palco de observação e de vivências para os artistas. A renovação literária se dá no mesmo contexto das reformas urbanas, ao lado da expansão da indústria, do comércio e dos transportes, no bojo do processo geral de modernização do país.
O primeiro poeta brasileiro a mergulhar na experiência poética de cantar a cidade moderna de maneira sistemática foi Mário de Andrade. Atento às experimentações das vanguardas e impressionado com as cidades tentaculares do poeta belga Émile Verhaeren, o poeta paulista concebe um projeto de traduzir São Paulo em imagens de uma escrita poética, o que faz no seu livro de estreia, Pauliceia desvairada (1922) e no seu último livro Lira Paulistana (1945). Em todos os seus livros encontram-se poemas que tematizam a cidade de São Paulo, que já assumia a posição de principal metrópole brasileira. Em vários poemas seus, preponderam observações líricas sobre a vida urbana, suas circunstâncias e vicissitudes cotidianas, transfiguradas pelo ponto de vista crítico do poeta atento às questões da modernidade. Observa-se a preocupação constante com temas da vida urbana, em seus aspectos intrínsecos à existência do homem no intrincado labirinto da cidade que se vai transformando e impondo rápidas mudanças na forma como os indivíduos participam do processo. Dessa forma, a poesia brasileira, através de um dos seus autores mais representativos, também produz a sua contribuição para a lírica da cidade moderna, inserindo-se de maneira expressiva na tradição da poesia urbana ocidental.
Disponível em:Caramure
2 comentários:
O poeta de Aleilton não é composto de músculos, nem é nutrido de finas iguarias. Sua consistência física é gerada pelas contrariedades da vida na urbi que o envolve numa cadeia de problemas. O poeta de Aleilton alimenta-se das contrariedades do crescimento urbano desvairado, da insensatez dos poderosos, dos presunçosos e amantes dos seus próprios interesses, a fim de registrar sua presença em um mundo de contradição. Joilton Cardozo. Mestrando no curso literatura e diversidade cultural.
O poeta de Aleilton não é composto de músculos, nem é nutrido de finas iguarias. Sua consistência física é gerada pelas contrariedades da vida na urbi que o envolve numa cadeia de problemas. O poeta de Aleilton alimenta-se das contrariedades do crescimento urbano desvairado, da insensatez dos poderosos, dos presunçosos e amantes dos seus próprios interesses, a fim de registrar sua presença em um mundo de contradição. JOILTON CARDOZO (Mestrando do curso Literatura e diversidade cultural
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