ENTREVISTA COM ALEILTON FONSECA
Por: Mànya Millen 17/08/09
O baiano Aleilton Fonseca, de 50 anos, já havia transformado um grande nome das letras brasileiras em personagem de romance com "Nhô Guimarães", em 2006. Depois de Guimarães Rosa, chegou a vez de Euclides da Cunha, homenageado com "O pêndulo de Euclides" (Bertrand Brasil) em seu centenário de morte. Ao construir um romance em torno de um escritor e uma obra ("Os Sertões) tão monumentais, o professor de literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e autor de mais de dez livros, sabe que corre riscos, como contou nesta entrevista ao blog. Porém, lembra que "o discurso romanesco registra certos fatos reais, mas os submete ao interesse da ficção". Aleilton estará participando nesta segunda-feira, às 19h30m, do projeto Prosa nas Livrarias na Travessa do Shopping Leblon, onde conversará com o público sobre sua obra, ao lado do professor Leopoldo M. Bernucci e da pesquisadora Nísia Trindade Lima.
Você já tem um outro romance-homenagem, “Nhô Guimarães”, inspirado em Guimarães Rosa. Fale um pouco sobre a primeira experiência e sobre a opção por esse tipo de narrativa.
Em 1979, aos 19 anos, cursando Letras na UFBA, em Salvador, conheci, li e comentei alguns contos de Guimarães Rosa e me impressionei muito com as histórias. Por ser de origem rural, eu me identificava com a linguagem, os enredos, as situações, as personagens e o imaginário presentes em suas narrativas. Mais tarde, como professor, passei a ser leitor e divulgador de sua ficção junto aos meus alunos. Como escritor, no ano 2000 tive a ideia de escrever uma história em que uma personagem sertaneja, de 80 anos, narrasse as viagens de Guimarães pelos sertões dos Gerais. Eu sabia que o escritor, nascido na pequena e encantadora cidade mineira de Cordisburgo, ainda muito jovem fora para a capital fazer seus estudos. Ao retornar ao interior, como médico, passou a se interessar pela cultura local: a linguagem, as histórias e diversos aspectos do imaginário popular sertanejo. Recolhia tudo e anotava em seus cadernos de campo. Conhecia pessoas que transformava em personagens de seus contos, como Manuelzão, por exemplo. Resolvi escrever uma ficção sobre isso. Assim surgiu o conto "Nhô Guimarães", publicado em 2001, no livro "O desterro dos mortos (Ed. Relume Dumará). Em seguida, expandi a narrativa e a transformei em romance, alargando os horizontes do discurso da narradora. O romance saiu em 2006, pela Ed. Bertrand Brasil. Nele, a narradora sertaneja fala de sua vida, de seu falecido marido, de seu filho, que se foi embora para a cidade grande. E ela fala, sobretudo, das visitas de Rosa à sua casa, quando proseava com o seu marido Manu, ouvindo, contando e inventando histórias. O romance foi adaptado como peça teatral e acaba de estrear no Teatro do Sesi Rio Vermelho, em Salvador, com direção de Edinilson Motta Pará e interpretação de Deusi Magalhães. E Guimarães Rosa fica muito bem como personagem de ficção. Foi uma experiência gratificante e, ao que parece, satisfatória. Optei por esse tipo de narrativa porque ela permite um instigante diálogo textual, em que realidade e imaginação amalgamam-se, dando origem a uma narrativa híbrida. É um desafio difícil e tentador.
Como criar uma voz própria a partir de personagens e obras (“Os Sertões”, no caso de “O pêndulo de Euclides”) tão conhecidos e celebrados? Qual o caminho para escapar da mera repetição de ideias e histórias que estão no original?
Neste tipo de narrativa, o risco da imitação é insidioso, como uma ameaça sempre presente. Resta ler o livro e verificar se o autor conseguiu se sair bem do desafio. O caminho para escapar da mera repetição é utilizar as referências como um ponto de partida e adensar o própria criação, dando bastante fôlego à parte ficcional. No caso de Guimarães, alguns de seus traços biográficos são diluídos e reelaborados na lógica da ficção, uma vez que ele passa a ser uma personagem construída segundo a perspectiva da narradora. Já Euclides da Cunha é uma referência constante do debate central do enredo, quando suas ideias são discutidas pelas personagens letradas e pelo narrador sertanejo. Os narradores transformam-no em personagem de ficção, revelando atos e pensamentos que não estão registrados na história oficial. Assim, a ficção assume uma função suplementar, ao criar situações que extrapolam os registros oficiais e explicitam facetas apenas presumíveis dos escritores em questão.
Para escrever “O pêndulo de Euclides” você disse ter visitado alguns dos lugares pelos quais o escritor passou. Essa “pesquisa de campo” ajuda a fundamentar a obra ou corre-se o risco de tanta realidade embaçar a criatividade, o espaço reservado aos voos da imaginação?
O risco existe, mas deve ser contornado. A solução é estabelecer os limites dos fatos reais e expandir os voos da imaginação. Os dados oficiais constituem marcos de verossimilhança, ajudando a fundamentar a obra. Mas não devem limitá-la, pois seu compromisso não é documental, mas estético. A partir dos dados reais, a ficção deve se desenrolar de forma autônoma, extrapolando as informações já conhecidas, de forma a instigar o leitor e desafiar as versões oficiais. Para concluir o romance "Nhô Guimarães", visitei a cidade de Cordisburgo; fui à casa de Guimarães Rosa. Para concluir "O pêndulo de Euclides", fui a Canudos e visitei detidamente o local onde se travou a guerra, hoje um Parque Estadual aberto à visitação pública. Vi e fotografei alguns lugares, vi objetos da guerra de Canudos e destaquei vários fatos da história. Mas só entraram na trama aqueles dados que convergem para a lógica do enredo, diluindo-se como parte integrante do discurso ficcional. No romance, Euclides torna-se personagem de ficção e age como tal, para além dos seus registros biográficos. Assim, o discurso romanesco registra certos fatos reais, mas os submete ao interesse da ficção, que discute, extrapola e até refuta determinados aspectos das versões oficiais. Nesse caso, a ficção está acima dos fatos.
O romance se apresenta como uma nova reflexão sobre a Guerra de Canudos. Como entra a figura de Euclides nesse contexto?
De fato, o romance retoma algumas questões da guerra que ainda não estão resolvidas. Tal como nas fontes oficiais, Euclides aparece inicialmente como um intelectual integrado à cultura litorânea, a favor da República e defensor da ação militar contra Canudos. Antes de ir para a região do conflito, ele escrevera dois artigos intitulados "A nossa Vendeia", nos quais deixa clara a sua posição, exaltando a marcha do Exército contra o Arraial do Belo Monte, ou Canudos, reduto dos adeptos de Antônio Conselheiro. No entanto, ao chegar ao local da guerra e presenciar os terríveis combates, nos quais as forças republicanas, treinadas e bem armadas, atacam e dizimam uma população de camponeses sertanejos, ele começa a duvidar de suas convicções, passando a ver a guerra como um crime contra um povo destemido que lutava por terra, fé e honra. O romance procura revelar ficcionalmente aquilo que é presumido mas não registrado na história, ou seja, as reflexões que levam Euclides da Cunha a reavaliar o conflito e, assim, mudar de opinião sobre a guerra. Essa mudança resulta de sua experiência e de sua compreensão profunda dos fatos. Assim, a ficção procura, à sua maneira, preencher os vazios da história, dramatizando o processo de tomada de consciência do autor, que resolve escrever o livro "Os sertões" como denúncia do crime cometido contra o povo sertanejo.
Você já tem em mente algum outro romance-homenagem? Qual seria o escritor que você gostaria de transformar em livro, independentemente de datas?
Tenho diversos projetos de livros, entre contos e romances, que vou desenvolvendo aos poucos. Alguns são pura ficção, outros pretendem retomar fatos reais como ambiência para enredos de ficção. Gosto desse tipo de escrita. Isso faz meu estilo. Um dos meus projetos é escrever sobre o poeta francês Charles Baudelaire, que teve uma trajetória pessoal e artística muito intensa e intrigante. A vida dele dá um romance. Enfim, na justa medida, realidade e ficção podem compor uma boa história. O mais importante é que o livro tenha qualidade como narrativa, com equilíbrio entre os dados da realidade e os aportes da imaginação. Narrar é preciso. E o leitor é o juiz.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/08/17/euclides-canudos-por-aleilton-fonseca-214637.asp Acessado em: 18/08/09
O baiano Aleilton Fonseca, de 50 anos, já havia transformado um grande nome das letras brasileiras em personagem de romance com "Nhô Guimarães", em 2006. Depois de Guimarães Rosa, chegou a vez de Euclides da Cunha, homenageado com "O pêndulo de Euclides" (Bertrand Brasil) em seu centenário de morte. Ao construir um romance em torno de um escritor e uma obra ("Os Sertões) tão monumentais, o professor de literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e autor de mais de dez livros, sabe que corre riscos, como contou nesta entrevista ao blog. Porém, lembra que "o discurso romanesco registra certos fatos reais, mas os submete ao interesse da ficção". Aleilton estará participando nesta segunda-feira, às 19h30m, do projeto Prosa nas Livrarias na Travessa do Shopping Leblon, onde conversará com o público sobre sua obra, ao lado do professor Leopoldo M. Bernucci e da pesquisadora Nísia Trindade Lima.
Você já tem um outro romance-homenagem, “Nhô Guimarães”, inspirado em Guimarães Rosa. Fale um pouco sobre a primeira experiência e sobre a opção por esse tipo de narrativa.
Em 1979, aos 19 anos, cursando Letras na UFBA, em Salvador, conheci, li e comentei alguns contos de Guimarães Rosa e me impressionei muito com as histórias. Por ser de origem rural, eu me identificava com a linguagem, os enredos, as situações, as personagens e o imaginário presentes em suas narrativas. Mais tarde, como professor, passei a ser leitor e divulgador de sua ficção junto aos meus alunos. Como escritor, no ano 2000 tive a ideia de escrever uma história em que uma personagem sertaneja, de 80 anos, narrasse as viagens de Guimarães pelos sertões dos Gerais. Eu sabia que o escritor, nascido na pequena e encantadora cidade mineira de Cordisburgo, ainda muito jovem fora para a capital fazer seus estudos. Ao retornar ao interior, como médico, passou a se interessar pela cultura local: a linguagem, as histórias e diversos aspectos do imaginário popular sertanejo. Recolhia tudo e anotava em seus cadernos de campo. Conhecia pessoas que transformava em personagens de seus contos, como Manuelzão, por exemplo. Resolvi escrever uma ficção sobre isso. Assim surgiu o conto "Nhô Guimarães", publicado em 2001, no livro "O desterro dos mortos (Ed. Relume Dumará). Em seguida, expandi a narrativa e a transformei em romance, alargando os horizontes do discurso da narradora. O romance saiu em 2006, pela Ed. Bertrand Brasil. Nele, a narradora sertaneja fala de sua vida, de seu falecido marido, de seu filho, que se foi embora para a cidade grande. E ela fala, sobretudo, das visitas de Rosa à sua casa, quando proseava com o seu marido Manu, ouvindo, contando e inventando histórias. O romance foi adaptado como peça teatral e acaba de estrear no Teatro do Sesi Rio Vermelho, em Salvador, com direção de Edinilson Motta Pará e interpretação de Deusi Magalhães. E Guimarães Rosa fica muito bem como personagem de ficção. Foi uma experiência gratificante e, ao que parece, satisfatória. Optei por esse tipo de narrativa porque ela permite um instigante diálogo textual, em que realidade e imaginação amalgamam-se, dando origem a uma narrativa híbrida. É um desafio difícil e tentador.
Como criar uma voz própria a partir de personagens e obras (“Os Sertões”, no caso de “O pêndulo de Euclides”) tão conhecidos e celebrados? Qual o caminho para escapar da mera repetição de ideias e histórias que estão no original?
Neste tipo de narrativa, o risco da imitação é insidioso, como uma ameaça sempre presente. Resta ler o livro e verificar se o autor conseguiu se sair bem do desafio. O caminho para escapar da mera repetição é utilizar as referências como um ponto de partida e adensar o própria criação, dando bastante fôlego à parte ficcional. No caso de Guimarães, alguns de seus traços biográficos são diluídos e reelaborados na lógica da ficção, uma vez que ele passa a ser uma personagem construída segundo a perspectiva da narradora. Já Euclides da Cunha é uma referência constante do debate central do enredo, quando suas ideias são discutidas pelas personagens letradas e pelo narrador sertanejo. Os narradores transformam-no em personagem de ficção, revelando atos e pensamentos que não estão registrados na história oficial. Assim, a ficção assume uma função suplementar, ao criar situações que extrapolam os registros oficiais e explicitam facetas apenas presumíveis dos escritores em questão.
Para escrever “O pêndulo de Euclides” você disse ter visitado alguns dos lugares pelos quais o escritor passou. Essa “pesquisa de campo” ajuda a fundamentar a obra ou corre-se o risco de tanta realidade embaçar a criatividade, o espaço reservado aos voos da imaginação?
O risco existe, mas deve ser contornado. A solução é estabelecer os limites dos fatos reais e expandir os voos da imaginação. Os dados oficiais constituem marcos de verossimilhança, ajudando a fundamentar a obra. Mas não devem limitá-la, pois seu compromisso não é documental, mas estético. A partir dos dados reais, a ficção deve se desenrolar de forma autônoma, extrapolando as informações já conhecidas, de forma a instigar o leitor e desafiar as versões oficiais. Para concluir o romance "Nhô Guimarães", visitei a cidade de Cordisburgo; fui à casa de Guimarães Rosa. Para concluir "O pêndulo de Euclides", fui a Canudos e visitei detidamente o local onde se travou a guerra, hoje um Parque Estadual aberto à visitação pública. Vi e fotografei alguns lugares, vi objetos da guerra de Canudos e destaquei vários fatos da história. Mas só entraram na trama aqueles dados que convergem para a lógica do enredo, diluindo-se como parte integrante do discurso ficcional. No romance, Euclides torna-se personagem de ficção e age como tal, para além dos seus registros biográficos. Assim, o discurso romanesco registra certos fatos reais, mas os submete ao interesse da ficção, que discute, extrapola e até refuta determinados aspectos das versões oficiais. Nesse caso, a ficção está acima dos fatos.
O romance se apresenta como uma nova reflexão sobre a Guerra de Canudos. Como entra a figura de Euclides nesse contexto?
De fato, o romance retoma algumas questões da guerra que ainda não estão resolvidas. Tal como nas fontes oficiais, Euclides aparece inicialmente como um intelectual integrado à cultura litorânea, a favor da República e defensor da ação militar contra Canudos. Antes de ir para a região do conflito, ele escrevera dois artigos intitulados "A nossa Vendeia", nos quais deixa clara a sua posição, exaltando a marcha do Exército contra o Arraial do Belo Monte, ou Canudos, reduto dos adeptos de Antônio Conselheiro. No entanto, ao chegar ao local da guerra e presenciar os terríveis combates, nos quais as forças republicanas, treinadas e bem armadas, atacam e dizimam uma população de camponeses sertanejos, ele começa a duvidar de suas convicções, passando a ver a guerra como um crime contra um povo destemido que lutava por terra, fé e honra. O romance procura revelar ficcionalmente aquilo que é presumido mas não registrado na história, ou seja, as reflexões que levam Euclides da Cunha a reavaliar o conflito e, assim, mudar de opinião sobre a guerra. Essa mudança resulta de sua experiência e de sua compreensão profunda dos fatos. Assim, a ficção procura, à sua maneira, preencher os vazios da história, dramatizando o processo de tomada de consciência do autor, que resolve escrever o livro "Os sertões" como denúncia do crime cometido contra o povo sertanejo.
Você já tem em mente algum outro romance-homenagem? Qual seria o escritor que você gostaria de transformar em livro, independentemente de datas?
Tenho diversos projetos de livros, entre contos e romances, que vou desenvolvendo aos poucos. Alguns são pura ficção, outros pretendem retomar fatos reais como ambiência para enredos de ficção. Gosto desse tipo de escrita. Isso faz meu estilo. Um dos meus projetos é escrever sobre o poeta francês Charles Baudelaire, que teve uma trajetória pessoal e artística muito intensa e intrigante. A vida dele dá um romance. Enfim, na justa medida, realidade e ficção podem compor uma boa história. O mais importante é que o livro tenha qualidade como narrativa, com equilíbrio entre os dados da realidade e os aportes da imaginação. Narrar é preciso. E o leitor é o juiz.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/08/17/euclides-canudos-por-aleilton-fonseca-214637.asp Acessado em: 18/08/09
2 comentários:
Paula, vamos realizar um evento em homenagem aos 50 anos de Aleilton. O evento vai acontecer no Instituto de Letras da UFBA dia 10 de setembro, das 13 às 17h. Se puder, me mande um email pra que eu te envie o material pra você divulgar no Blog, se for possível.Tentei enviar pra o email que você disponibiliza aqui, mas o email tá voltando. O meu email é lisianesol@yahoo.com.br.
Aguardo um retorno...
Oi Lisiane, t mandei o e-mail, caso ñ receba me avise...p enviar atraves por outra conta...bjs
Postar um comentário